segunda-feira, 9 de novembro de 2015

grande enchente do rio vermelho de 1839

em 1957 o jornal Gazeta de Goiás publicou um extenso artigo sobre a enchente ocorrida em fevereiro de 1839 que, entre outros prejuízos, destruiu a igreja de N. S. da Lapa. Esse artigo, distribuído em vários números do jornal é aqui transcrito, utilizando vocabulário e pontuação originais:

A GRANDE ENCHENTE DE 1839
Gazeta de Goiás – 11/08/1957


Quantos de nós, entristecidos ouvem a narração da enchente que causou sérios prejuízos a grande parte da população desta cidade e levou a Igreja das Lapa com seus sinos badalando como se pedissem socorro.
Segundo cremos, há acréscimo nas notícias daquele fato, como a afirmação de que um dos sinos esteja enterrado no lugar (chamado) Pinguelona, no Rio Vermelho.
Conforme as crônicas da época, a grande enchente de 19 de fevereiro de 1839, também alcunhada Enchente de São José, teve por causa não só a chuva que caia a cântaros desde o dia 14 como também uma colossal tromba que se desfez no lugar denominado Calção de Couro a meia légua desta cidade na direção de nordeste acrescendo que os reservatórios naturais das águas das montanhas daquém e além do Rio Vermelho rebentaram em quatro lugares diversos precipitando as águas em carreira vertiginosa pelas encostas até se confundirem com as do rio que assim acrescido invadiu parte desta cidade indo lavar a porta do sobrado da família Vieira, na rua Direita (hoje Moretti Foggia), o Largo do Mercado, rua 13 de Maio, na Paróquia de Sant’Ana.
Na Freguesia do Carmo, o nível ia próximo do Largo do Rosário, pela qual derivavam as águas que entravam pela rua da Cambaúba.


Gazeta de Goiás – 18/08/1957

            Trasladamos dois ofícios que em 3 de março e 3 de maio de 1839 dirigiu ao Ministro Bernardo Pereira de Vasconcellos o ver. Padre Luiz Gonzaga de Camargo Fleury então presidente da província.
            “Ilmo e Exmo Sr. – Tenho a honra de levar ao conhecimento de V. Exa. que pelas participações recebidas das Comarcas da Província posso assegurar a V. Exa. que nada tem havido que possa ameaçar a ordem e tranquilidade pública.
            Esta cidade porém acaba de sofrer uma catástrofe terrível causada pela extraordinária inundação do Rio Vermelho acontecimento este que teve lugar entre 6 e 9 horas da manhã do dia 19 de fevereiro – o Rio Vermelho corta a cidade de nascente a poente quase em partes iguais: três pontes ofereciam a comunicação para os habitantes; e um córrego chamado Manoel Gomes que corre para o norte e conflui no Rio Vermelho pouco acima da ponte do meio (Lapa) aproxima-se aos portões das casas que fazem frente para a Rua Direita tendo chovido copiosamente desde quinta feira, 14 de Fevereiro e por isso achando-se já o Rio Vermelho bastantemente cheio, as 11 horas da noite de segunda feira 8 de Fevereiro começou uma chuva grossa sem cessar atéas 9 horas do dia 19.




Gazeta de Goiás – 25/08/1957

            Continuamos hoje, a publicação dos ofícios enviados pelo ver. padre Luiz Gonzaga de Camargo Fleury ao Ministro Bernardo Pereira de Vasconcellos relatando a ocorrência:
            As 6 horas da manhã começou o Rio Vermelho e o Manoel gomes a transbordar e então todos os moradores vizinhos reconheceram o perigo e começaram a pedir socorro não só salvarem como também salvar seus bens;
De repente desapareceram as pontes, interrompeu-se a comunicação entre os habitantes d’aquém e d’além do rio, o Manoel Gomes represado pelo Rio Vermelho começou a inundar os quintais das casas da rua Direita, d’aquém e bem depressa lançava suas águas pelas portas e janelas e entrando pelo beco chamado da Lapa (junto a casa do finado coronel Confúcio) formou-se um grande rio, ficando circuncidadas d’água as casas dos negociantes Joaquim Xavier dos Guimarães Francês, (avo paterno do dr. Guimarães Natal, e Manoel Joaquim da Silva Paulista (avô paterno de Monsenhor Ignacio Xavier) a do 1° em poucos minutos desapareceu com uma boa loja de fazendas, secos e ferragens, a do 2° logo depois restando apenas muito arruinado um pequeno sobrado com frente para o beco da Lapa no qual pôde salvar ele parte de suas fazendas salvando-se ele mesmo e sua família por uma escada, que do telhado d’uma casa térrea se lançou a janela do sobradinho caindo essa parte e a casa térrea apenas tinha esta família sido salva; um cabo porém de 1ª linha que se aventurou a atravessar o beco das casas do Paulista para as do negociante Joaquim José d’Azeredo foi arrebatado pela correnteza e afogou imediatamente; este cabo se chamava José Pereira da Silva e por sua morte deixou inconsolável sua mãe viúva pobre e uma irmã órfã.
Logo que observei crescer extraordinariamente a inundação, mandei tocar chamada geral e apesar da copiosa chuva concorreram toda tropa de 1ª linha, muitos guardas Nacionais e oficiais, todos se expuseram ao perigo para salvar os que estavam sofrendo a inundação porém, só o cabo já referido pereceu. A chamada serviu para despertar os habitantes d’ambos os lados da cidade, mas já sem comunicação por terem caído as pontes; houve porém em toda parte a mesma energia, a mesma boa vontade e todos se empregavam em livrar e auxiliar os desgraçados. A capela de N. Sra. da Lapa solidamente edificada defronte da casa do finado coronel Confúcio (hoje Hotel Municipal) sendo sua torre e paredes de pedra e cal, não pôde conservar-se e aluídos seus alicerces por estar junto ao caes do rio caiu toda, cavando o rio o próprio terreno em que ela tinha existido.

Gazeta de Goiás – 01/09/1957

O Hospital de Caridade de S. Pedro de Alcântara, foi todo inundado, caíram seus muros e algumas paredes ficaram todas arruinadas e perderam-se drogas medicinais da botica da casa, alguma roupa destinada para os enfermos, mas salvaram-se todos os doentes que foram acolhidos em as casas do Boticário do Hospital Vicente Moretti Fóggia.
A fábrica de Fiação e Tecelagem ficou cercada e o mestre da fábrica com sua família esteve em perigo iminente dentro do forro de uma sala, subindo a água até as arcadas das janelas e por isso quase tocando no forro; as suas paredes eram de pau-a-pique se arruinaram, caíram todos os muros e perderam-se muitos utensílios da fábrica. – A casa do Açougue público perdeu todas as suas paredes de tipa socada.

Gazeta de Goiás – 08/09/1957

Aluiu-se e arruinou-se todo o cais do rio Vermelho estendendo-se esta ruina a todas as casas que frenteava com o dito, caindo todas sem mesmo exeptuar-se as do coronel Felipe Antonio Cardoso (hoje residência da família André Mundim) e a do capitão José Joaquim Pulquério dos Santos (residência da família Zacheu Alves de Castro) que pareciam menos expostas a perigos tais.
            A Carioca que é uma fonte pública da melhor água, ficou debaixo da terra do desmoronamento do morro que lhe está contíguo. O rio Vermelho depois de inundar e destruir a chácara chamada Moinho entrou pela rua da Cambaúva e deitou por terra 9 casas arrastando-as e seus quintais, entrando por todos os quintais da mesma rua até os das casas do largo do Rosário e os da rua Direita d’além do rio lançou por terra todos os quintais.


Gazeta de Goiás – 15/09/1957

Chegando mesmo a destruir as cozinhas e varandas de algumas, derrubando pela metade as de José Joaquim d’Almeida e de Antônio Ferreira Lima na dita rua Direita sofrendo mesmas ruínas as do coronel Couto e mais quatro casas em seguimento da rua. Todas as casas do beco da Lapa foram por terra sem exeptuar as do negociante Azeredo, as do alferes Joaquim Marcellino de Camargo e todas as mais até as do negociante João José de Souza e Azevedo serviram de canais para as águas do córrego Manuel Gomes e soffreram grandes deterioramentos ficando arruinadas e algumas caídas sendo destruídos todos os quintais das casas deste lado da rua Direita até o beco chamado Dr. Ignácio que sai no largo do Palácio.
Todas as casas da rua de Joaquim Rodrigues (13 de Maio) que deitam os fundos para o rio desde o largo da Lapa caíram totalmente e deste largo bem como no princípio da rua de Joaquim Rodrigues não se passava senão a nado. Uma vala que recebendo as águas da rua Nova vai lança-las ao rio Vermelho descendo por um beco entre os fundos das casas das ruas do Carmo e Direita foi inundada e transbordando deitou por terra todos esses quintais chegando a arruinar e fazer cair algumas casas inferiores da rua do Carmo. Pela descrição de tantas ruínas que tiveram lugar das 6 horas da manhã pode V. Exa. qual seria o perigo, prejuízo geral e clamor em vista de tanta calamidade.




Gazeta de Goiás – 22/09/1957

Pela folha do Correio Oficial n° 162 ficará V. Exa. ao fato das providências que se deram a respeito: cumprindo-me declarar a V. Exa. que mandei proceder a um exame e avaliação dos prejuízos tanto dos edifícios públicos como nos particulares para levar tudo a respeitável presença de V. Exa. esperando os habitantes desta cidade que o governo de Sua Magestade o Imperador comovido pela desgraça de tantas famílias que se acham hoje reduzidas quase a indigências estenderá suas vistas Paternaes e Caridosas sobre esta porção de súbditos que se prezam de ter sido sempre amigos da ordem, e fieis observadores da ordem. Deus guarde a V. Exa.
Palácio do Governo da Província de Goiás. 3 de março de 1839. Ilm. e Exm. Sr. Bernardo Pereira de Vasconcellos Luiz Gonzaga de Camargo Fleury.
Ilmo. e Exmo. Sr. Tendo se concluído o orçamento da despeza necessária para serem redificadas as obras públicas arruinadas pela extraordinária enchente do Rio Vermelho, bem como avaliação dos prejuízos que em seus prédios sofreram os habitantes desta cidade junto ao rio assim como o orçamento das despesas para ser redificada a capela de Nossa Senhora da Lapa como tudo consta dos documentos juntos o conhece que as obras públicas é necessário quantia de 32:170$000; a igreja da Lapa 7:000$000 e que os prejuízos dos particulares em seus prédios é orçado em 21:971$640 rs acrescendo que informando-me com a mais aproximada exatidão dos prejuízos que os particulares sofreram em fazendas molhadas, trastes, dinheiro, orço em 24:000$000 rs vindo por esta conta a sofrer o público e o particular pela inundação do rio Vermelho o prejuízo de 84:000$000 rs mais ou menos: sendo esta capela habitada em sua maioria por homens de pouca fortuna e sendo muito diminutas as rendas provinciais de tal maneira que o cofre provincial é suprido pelo geral, e não há esperanças de que pelas rendas públicas se possam fazer os concertos necessários nas obras públicas e nem os particulares pela maior parte sem meios de redificar seus prédios arruinados, existindo ainda hoje casas caídas cujos donos nem possibilidades tem para acautelar alguns materiaes que ainda poderiam servir.

Gazeta de Goiás – 29/09/1957

Em tão triste e lamentáveis circunstancias todos tem depositado suas esperanças no Paternal Governo de Sua Magestade o Imperador e na Liberalidade da Assembleia Geral; e conhecendo eu o misérrimo estado a que ficaram reduzidos muitos e que a Assembleia Provincial só há de reunir em Outubro próximo futuro e que por isso suas rogativas já não poderiam chegar a tempo do serem atendidas na presente seção ordinária da Assembleia Geral tomei a resolução de enviar eu mesmo os inclusos documentos e o presente ofício rogando um socorro secundário, tanto para as obras públicas como para os particulares prejudicados. Digne-se pois V. Exa. o bem desta porção de brasileiros que sempre presou-se de ser fiel e aderente ao systhema do governo que felismente nos rege fazer presente tudo isso ao regente cooperando V. Exa. com sua régia Benigna intervenção para o feliz êxito desta súplica. Deus guarde V. Exa. Palácio do Governo da Província de Goyaz 3 de Maio de 1839. Ilmo e Ex. Sr. Bernardo Pereira de Vasconcellos Luiz Gonzaga de Camargo Fleury.

FIM