quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Arquitetura em Goiás VI

OS NOVOS CONCEITOS DE MODERNIDADE

Ao mesmo tempo em que a arquitetura déco se desenvolvia em praticamente todo o mundo, novos conceitos de modernidade se apresentavam, utilizando propostas diferenciadas, além de se apoiarem em manifestos e documentos teóricos, o que o art déco desconsiderava, em suas propostas modernizantes.
A velocidade com que os acontecimentos políticos, econômicos, sociais e culturais se sucediam no Brasil das primeiras décadas do século XX, provocava, além de mudanças muito rápidas, um sério acirramento nas discussões, que, no mais das vezes, levava a rupturas e engajamentos dos artistas e intelectuais em uma série de linhas de pensamentos e posicionamentos teóricos. Em arquitetura, o predomínio do grupo que defendia um caráter nacionalista, com base nos conceitos ecléticos do neocolonial, provocava a crítica e a rebeldia daqueles que procuravam linhas mais progressistas e menos acadêmicas, ou mesmo o que à época era denominado “historicista”. Nesse grupo, estavam principalmente os estudantes e os arquitetos mais jovens que viam nas discussões internacionais uma possibilidade maior de modernização da arquitetura brasileira.
Em termos internacionais, a década de 1920 foi marcada pela realização, em Atenas, na Grécia, do primeiro Congresso Internacional de Arquitetura Moderna – CIAM –, que de certa forma iniciou um grupo de arquitetos brasileiros nos debates modernistas. Foi também o momento em que Le Corbusier, teve suas idéias divulgadas na América do Sul, a partir de uma série de palestras e debates levados a efeito no Rio de Janeiro, São Paulo e Buenos Aires. A partir de tais contatos, Lúcio Costa, Carlos Leão, Cármen Portinho e Vital Brazil, no Rio de Janeiro, assim como Gregori Warchavchik, Jayme da Silva Telles e Flávio de Carvalho, em São Paulo, influenciados pelas palavras do grande teórico franco-suíço, passaram a desenvolver e a defender sua linha de pensamento.
A chegada de Getúlio Vargas ao poder, em 1930, trouxe para a arquitetura brasileira a possibilidade de avanços significativos. A escolha de Gustavo Capanema para o Ministério da Educação e Saúde trouxe para dentro da repartição pública, os debates que já vinham ocorrendo já, há quase uma década, sobre as questões modernistas, principalmente nas artes plásticas e na literatura. Capanema cerca-se de nomes como Drumond de Andrade, Mário de Andrade, Rodrigo Mello Franco e Lúcio Costa, entre outros que, além de colocarem na prática as idéias modernistas, definem uma outra linha de pesquisa para as questões modernas, que é o estudo sistemático das coisas relacionadas com o nosso passado, definindo os conceitos do que seria o patrimônio histórico, além de uma legislação de proteção ao acervo cultural brasileiro.
Nesse momento, Mário de Andrade, atendendo a uma solicitação pessoal de Capanema, elabora o texto do “Artigo 25”, sobre a proteção do patrimônio histórico e artístico, e Lúcio Costa assume a direção da Escola Nacional de Belas-Artes (ENBA). Já havendo participado do movimento neocolonial e inclusive desenvolvido projetos com essa caracterização, Lúcio Costa, ao assumir a direção da escola, estava em franco entusiasmo com os conceitos modernistas, levando para aquela instituição de ensino, vários arquitetos vinculados ao novo processo arquitetônico. Grandes vão ser as desavenças entre modernistas e neocolonialistas dentro da escola, que culminam na demissão de Lúcio Costa, no ano seguinte. De acordo com Lauro Cavalcanti (2001, p.14)

os “modernos” são considerados “dignos” pelo estado de tornarem “digna”, em seu nome, a produção que sofrerá uma operação de “sacralização” através da inscrição nos Livros de Tombo e de uma legislação especial que impede o seu desaparecimento ou descaracterização. Adquiriram, também, a prerrogativa de opinar em construções no entorno de bens tombados. Na prática, tal função conferiu-lhes o papel de planejadores não só das cidades históricas, como também da área central da maior parte das capitais.

Os conceitos de modernidade e desenvolvimento, que passam a representar o governo Vargas, determinam a implantação e o desenvolvimento no país, de duas correntes distintas dentro do processo evolutivo da arquitetura brasileira. Não havendo por essa época nada que as separasse, as tendências tanto do que hoje é conhecido como “modernista” quanto como “art déco”, eram à época caracterizadas pelo título de “arquitetura moderna”, em oposição radical aos conceitos da arquitetura eclética. Revistas especializadas desse período apresentavam suas diferenças como resultantes de suas origens, sendo o déco citado como tendência francesa e o modernismo como tendência alemã. E, mesmo que a modernização da arquitetura brasileira tenha passado pelo conhecimento e aprendizagem de tais influências, de acordo com Segawa (1997, p. 112),

a arquitetura moderna brasileira, mesmo informada de um conteúdo internacionalista, corresponde a um esforço de transfiguração de concepções, adquirindo cores próprias sem se apoiar numa tradição local imediata (eclética nas três primeiras décadas do século 20), mas buscando no passado referências de identidade – um desafio próprio daqueles que buscam a criação e a originalidade inerentes à contemporaneidade, mesmo enfrentando e carregando as marcas das incoerências políticas e sociais bem como o peso das divergências ideológicas de um país à margem.

Assim, os conceitos e estudos desenvolvidos por grande parte dos modernistas brasileiros, sobre a arquitetura do período colonial, vão levar a uma produção de caráter eminentemente brasileiro, mesmo que as origens dessa modernidade estejam na Europa ou mesmo nos Estados Unidos da América. Além do mais, com seu caráter social e ético, consegue se sobrepor e abafar, em definitivo, a arquitetura neocolonial, que, de certo modo, ainda tentava se manter, disputando lugar com os modernistas.
Apesar de já contar com os projetos de Gregori Warchavchik, em São Paulo, desde 1927, o edifício considerado marco inicial de desenvolvimento da arquitetura moderna no Brasil, vai ser, sem sombra de dívida, a sede do Ministério da Educação e Saúde, de 1936, na capital federal, que contou, para seu desenvolvimento com a participação de vários arquitetos modernistas, como Lúcio Costa, Oscar Niemeyer, Eduardo Reidy, Carlos Leão, Jorge Moreira e Ernani Vasconcellos, além da consultoria do mestre Le Corbusier. Também considerado como marco de referência da arquitetura moderna brasileira, principalmente para a crítica internacional, vai ser o pavilhão brasileiro, na Feira Internacional de Nova York, de 1939-1940, cujo projeto elaborado por Lúcio Costa em parceria com Oscar Niemeyer, que, segundo Cavalcanti (2001, p.407), proporcionaram uma leitura particularizada dos conceitos desenvolvidos por Le Corbusier, demonstrando a relatividade do que se considerava como divisões clássicas entre função organicismo e racionalidade, confirmando o modernismo como a vanguarda do que já se elaborava em território brasileiro. A construção de Brasília vem, assim, coroar esse desenvolvimento, passando a partir de então, a arquitetura moderna brasileira a se orientar, em várias direções, com características específicas próprias a cada uma delas.
A partir de então, algumas características vão marcar o desenvolvimento desse modelo arquitetônico, determinando alguns grupos que se sobressaem em diferentes regiões do país e que passam a ser considerados como escolas, sobressaindo-se entre elas, a carioca, a paulista e a pernambucana ou do Recife, principalmente. No Recife, o nome de maior destaque vai ser o de Luís Nunes, formado no Rio de Janeiro, no período de efervescência das discussões modernistas, tendo como estudante se destacado nos movimentos pela permanência de Lúcio Costa, na direção da ENBA. Foi o primeiro arquiteto a desenvolver projetos modernistas no nordeste, inovando no uso de materiais e nos conceitos formulados no período em que esteve à frente da Diretoria de Arquitetura e Construção de Pernambuco. Sua morte prematura, aos vinte e nove anos, se por um lado encerrou o desenvolvimento de seus trabalhos, não foi, no entanto, empecilho ao desenvolvimento do modernismo no nordeste, tendo continuidade através de outros arquitetos incentivados pelo trabalho pioneiro de Nunes.
No caso paulista, a proximidade com o Rio de Janeiro e a participação nos amplos debates e discussões em desenvolvimento, na capital federal, não se apresentaram como impedimento a uma produção arquitetônica de características próprias, evoluindo-se praticamente em paralelo àquela. Destaca-se, dentro da chamada escola paulista, João Vilanova Artigas, seguido de perto por Paulo Mendes da Rocha, entre outros. Formado pela Escola Politécnica de São Paulo, Artigas teve seu trabalho caracterizado pela ousadia no uso do concreto, pelos grandes vãos, além da preferência pela linha reta e ângulos nem sempre retos. Na arquitetura paulista, o concreto se apresenta como um elemento fundamentalmente plástico, sendo utilizado ao natural, e, em determinados momentos seu uso tem sido rotulado como “brutalista” (Reis Filho, 1976, p.94).
Apesar de elaborarem projetos para praticamente todo o território nacional, os arquitetos cariocas conseguiram desenvolver uma forma de trabalho e um padrão arquitetônico que os diferenciou, ao mesmo tempo em os transformou em referência e sinônimo de modernidade completa. E, sendo o modernismo um movimento, calcado em conceitos e regras teóricas definidas, são, durante várias décadas, os arquitetos cariocas os que se colocaram na vanguarda da produção, não somente teórica, como crítica e conceitual, propondo, dentro da produção modernista, a releitura e atualização de conceitos próprios da arquitetura do período colonial de caráter vernacular.
A implantação do modernismo, na arquitetura brasileira, propiciou também o desenvolvimento de uma ação integrada entre o edifício e o espaço público. Comentando sobre a implantação de Brasília, diz Reis Filho (1976, p.94) que, pela primeira vez, em nossa arquitetura foi possível encontrar uma solução que resolvesse, de modo amplo e simultaneamente, tanto problemas arquitetônicos quanto urbanísticos, permitindo com isso um aumento nas probabilidades de sucesso em ambos os setores.
Em Goiânia, esse modelo de arquitetura passa a ter representatividade, em princípios da década de 1950, com os projetos desenvolvidos por Eurico Godoy e Elder Rocha Lima, dois arquitetos goianos recém formados no Rio de Janeiro e fortemente influenciados pelo que se estava fazendo por essa época, naquela cidade.

A arquitetura modernista em Goiânia

A arquitetura de caráter modernista teve sua estréia, em Goiás, no ano de 1952 através do projeto de um edifício residencial desenvolvido por Eurico Godoy, para Terezinha M. S. Bacelar, a ser construído, na esquina da Avenida 10 com a Rua 91, no Setor Central.
Esse projeto representou para a arquitetura desenvolvida à época, em Goiânia, um coroamento no que se relaciona aos interesses modernizantes pretendidos pelo fundador, trazendo para o estado, o movimento modernista, com um atraso de praticamente trinta anos em relação ao que já acontecia nas outras capitais do país.
Fachadas da residencia de Terezinha M. S. Bacelar projetada por Eurico Godoy

Além da importância decorrente do momento histórico de sua implantação na cidade, esse projeto se apresenta com soluções extremamente simples,

O que pode ser percebido na forma retangular utilizada e na organização espacial tanto interna quanto externa, apenas que utilizando uma tradição ainda desconhecida da população goianiense, no que diz respeito a essa organização. Sendo assim, transforma o alpendre em uma varanda que ocupa toda a largura do retângulo, abrindo o bloco do edifício com a profundidade provocada por esse elemento, além de criar uma sensação de amplitude, com a utilização de panos de vidro, integrando estar, varanda e o exterior da residência (Coelho, 1994, p. 4).

Percebe ainda, ao se analisar a planta desse edifício, uma certa rigidez no que se refere à distribuição dos espaços, apesar de estar clara a preocupação com um certo racionalismo em sua organização. A utilização de um pequeno jardim de inverno – o que se constitui em uma das maiores inovações do projeto – atua no edifício como um elemento de integração que amplia o espaço da sala de estar, além de promover tanto a iluminação quanto a ventilação de áreas internas e reduzir visualmente o corredor de distribuição.
Planta da residencia de Terezinha M. S. Bacelar projetada por Eurico Godoy

Com relação à volumetria do edifício, a primeira coisa que se pode observar é o deslocamento do edifício em relação ao terreno, colocando a varanda em balanço e, forçando o aparecimento de uma sinuosa rampa de acesso. Elemento que se destaca em relação ao padrão residencial desenvolvido na cidade, até então, é a fachada voltada para a Rua 91.
percebe-se através dessa elevação, o caimento do telhado, em duas águas, com calha central, convergindo para o jardim de inverno, que divide a edificação em dois blocos trapezoidais. Dando continuidade ao movimento provocado por tais elementos, temos no bloco que corresponde à área íntima, uma grande abertura com esquadria que atende em uma única peça, tanto ao quarto quanto ao banheiro, abrindo assim, quase que toda a largura da parede para o exterior (Coelho, 1994, p. 4).


Quanto à utilização dos materiais construtivos, não houve, nesse edifício, a adoção de nada que pudesse ser considerado inovador, dentro dos padrões utilizados em Goiânia, até então. Apesar de já existirem esquadrias metálicas, o que se tem aí, é a utilização de da madeira, com grandes vãos envidraçados, sendo que, elaboradas em metal, apenas as portas que separam a sala da varanda e do jardim de inverno. Os metais, luminárias e materiais de acabamento são praticamente os mesmos encontrados nas demais residências do centro da cidade. Convém observar que eram praticamente materiais importados de outras regiões, já que não existiam em Goiânia, indústrias que atendessem a tais necessidades. 

domingo, 25 de janeiro de 2015

Arquitetura em Goiás V

A ARQUITETURA ART DÉCO E A CONSTRUÇÃO DA NOVA CAPITAL

Fundada em um dos momentos de maior transformação da história do Brasil, a cidade de Goiânia representou, dentro dos conceitos de modernização e progresso que marcaram o governo de Getúlio Vargas, a possibilidade de se implantar, na parte mais central do país, uma cidade que trouxesse em si todo o potencial de modernidade que se considerava possível à época.
A arquitetura, que passa a representar esse momento da história, se apresenta como decorrente de uma série de modificações, experiências e novas propostas que, no geral, representavam as angústias e ansiedades próprias do período entre-guerras, responsáveis por grandes transformações ocorridas, em praticamente todo o mundo, nas décadas seguintes.
Em meio a todas as transformações em andamento, envolvendo as artes plásticas, a literatura, a música, a dança, entre outras atividades é que

surge também o art déco, apresentado formalmente em 1925, na Exposição Internacional das Artes Decorativas e Industriais Modernas, acontecida em Paris. De uma forma geral, esse estilo apresentava-se como uma evolução, ou proposta de substituição ao art nouveau, já um tanto saturado à época (Coelho, 1997, p. 17).

Esse modelo arquitetônico que teve seu maior desenvolvimento no decorrer da década de 1930, com o apogeu, em fins da década de 1940, passou a representar todas as expectativas de modernidades percebidas pelos goianos, influenciando também todas as cidades do interior do estado que, vendo na nova capital um modelo a ser seguido, passaram a se utilizar de todos os elementos representativos do novo estilo para representar a modernidade de seus principais edifícios.
Esse foi, particularmente, um momento de grande crescimento na produção arquitetônica desenvolvida no Brasil, principalmente no que se relaciona ao desenvolvimento de um acervo de responsabilidade do poder público. Surge, nesse período, um significativo número de edificações, visando atender às necessidades públicas de escolas, repartições governamentais e, destacando-se tanto em número quanto em variedade de modelos, as agências dos Correios e Telégrafos. Convém observar que, a partir da contratação e organização de um amplo corpo técnico, o Departamento de Correios e Telégrafos

implantará sedes regionais e agências com as características do art déco em todo o país. Esses edifícios variavam entre obras mais elaboradas e detalhadas, como as de Belém, Fortaleza e Belo Horizonte, até as mais modestas, como as encontradas no interior de Goiás que, com toda a sua simplicidade, demonstram a total preocupação da época com o apuro estético (Coelho, 1997, p.33).

No caso específico de Goiânia, que além de representar um momento particularmente importante do desenvolvimento político e social do país, deveria também caracterizar um processo de crescimento arquitetônico e urbanístico através do qual se pretendia a modernização do estado e a transferência da capital.
Assim, dadas as circunstâncias e a situação econômica por que passava o governo do estado, o resultado arquitetônico foi uma produção de estrema sobriedade com tendências classicizantes que representava, em todos os sentidos, o poder autoritário que naquele momento comandava o país. Em relação ao que se construiu na nova capital, durante esse período, no sentido de abrigar as administrações tanto federal quanto estadual e municipal, são edifícios que tiveram por base essas características, além de se utilizarem basicamente dos recursos disponibilizados pelo estado. Sendo assim, nada mais natural que essa produção se caracterize, pelo menos nos primeiros momentos e principalmente nos edifícios de caráter oficial, por uma volumetria cubista, organizada em função de uma estrutura racional, buscando uma certa economia, o que vai contribuir fortemente para que seja considerada extremamente simples, em relação ao que se fazia no restante do país, além de ser vista como revestida de forte gosto neoclássico. Não é a toa que Armando de Godoy (1979, p. 52) já dizia em seu relatório sobre a construção da nova capital que

Um edifício público não precisa ser constituído por materiais caros para se impor à admiração geral do ponto de vista estético. A beleza de uma construção está na relação das suas diferentes partes e na distribuição dos seus volumes (...). os edifícios públicos da futura capital podem perfeitamente corresponder a seus fins, inclusive os de ordem estética, concorrendo, portanto, para aformoseá-la, sem que, entretanto, a sua construção absorva elevadas somas, desde que sejam projetadas e não haja a preocupação de se realizar obra de luxo.

Além de seu caráter simbólico de novo centro do poder, a cidade de Goiânia passa a dominar o imaginário das pessoas também por suas características representativas de uma modernidade ansiada por toda a população, tendo em vista a totalidade dos discursos políticos da época que batiam sempre na questão da importância de vincular o estado de Goiás aos novos conceitos de modernidade em andamento não só no restante do país, mas também na maioria dos países considerados progressistas.
Nesse momento, a arquitetura em desenvolvimento no estado, passa a acontecer em consonância com o que acontecia em praticamente todo o país. O mesmo acontecia nas cidades do interior. O prefeito de Ipameri organizou um concurso de projetos para a construção da nova sede da administração municipal e todos os projetos apresentados foram desenvolvidos dentro dos estilemas do art déco. Edifícios escolares, as agências dos correios e telégrafos, cinemas, mobiliário urbano e  um grande número de edifícios comerciais e residências começam a apresentar os elementos próprios do déco.
Em Ipameri, a sede da Prefeitura Municipal, o Colégio Eduardo Mancini, a agência dos correios, agências bancárias e um grande número de projetos residenciais desenvolvidos por arquitetos locais e mesmo alguns contratados em Goiânia ou São Paulo. Em Goiandira, a agência dos correios, a segunda estação ferroviária, a torre do relógio na praça principal da cidade, além de várias residências. O mesmo acontece em Catalão, Pires do Rio, na secular Bonfim, que por essa época tem seu nome alterado para Silvânia e mesmo Anápolis que, em 1935, passou a ser o ponto final da linha férrea. Praticamente, da década de 1930 à de 1950, o art déco foi a principal referência de modernidade para a população de todas as cidades do interior de Goiás. 
Torre do relógio em Goiandira com características art déco

Em Goiânia, entre os edifícios de caráter público, destacam-se as duas estações ferroviárias, tanto a central quanto a do Setor Campinas, o Teatro Goiânia e o edifício do Museu Prof. Zoroastro Artiaga, este último construído para sediar o Departamento de Imprensa e Propaganda – DIP – a polícia política do período do Estado Novo. Entre as edificações de caráter particular, destacam-se a residência do fundador da cidade, atual Museu Pedro Ludovico e uma residência já demolida, na esquina da Rua 2 com a Avenida Tocantins. As sedes da Associação Goiana de Pecuária, Associação Goiana de Agricultura e a antiga sede do Banco do Brasil, na esquina da Rua 1 com a Avenida Goiás, representam os edifícios institucionais com essas características.
Edifício do Teatro Goiânia

O edifício art déco do Museu Zoroastro Artiaga

Projetado, em 1945, pelo engenheiro polonês Kazimierz Bartoszenvski, esse edifício deveria inovar a arquitetura goiana em uma série de elementos, sendo o principal deles o uso de grandes vãos, o que permitiria uma extrema mobilidade dos espaços internos, caracterizada por um pequeno número de paredes no pavimento superior e praticamente nenhuma no inferior.
Fazia parte do projeto original, um volume central de forma circular que abrigaria uma cobertura translúcida que deveria projetar iluminação natural sobre a ampla escada situada no centro geométrico do edifício. Supõe-se que para os padrões da época, essa escada também provocaria um certo espanto, sendo, possivelmente, liberada de maiores estruturações.
Projeto elaborado para a sede do Departamento de Imprensa e Propaganda

De base quadrada, compondo uma fachada de extrema austeridade, com altas colunas e de composição elaborada com perfeito equilíbrio, é um edifício que marca bem as características dos fins para os quais foi projetado. Mais até que o edifício do palácio do governo era essa construção a representação mais próxima dos conceitos políticos desenvolvidos pelo Estado Novo.
Fachada atual do edifício que hoje abriga o Museu Zoroastro Artiaga

Entretanto, provavelmente em decorrência da falta de mão-de-obra especializada para sua perfeita execução, esse edifício sofreu, em sua construção, alteração que descaracterizaram por completo suas principais intenções projetuais: a escada foi transferida para uma das laterais, a cobertura translúcida nunca foi executada e os grandes vão nunca chegaram a acontecer. Para completar, no decorrer da década de 1960, as janelas do pavimento superior de sua fachada oeste foram emparedadas no intuito de diminuir o calor que incomodava os funcionários, o que, de certa forma, aumentou a austeridade do edifício.
Planta executada com alterações, em 1946.


Apesar de ter sido o projeto para esse edifício elaborado, em 1945, sua construção só teve início, em 1946, ano em que o DIP foi extinto através do Decreto-lei n° 383, de 6 de fevereiro. Através do mesmo decreto foi criado o Departamento de Educação e Cultura (DEC), ao qual estava vinculado o Museu Estadual. Sem sede própria, o museu funcionou em conjunto com o DEC, com exposição permanente e acervo eminentemente eclético.

sábado, 24 de janeiro de 2015

Arquitetura em Goiás IV

O ECLETISMO NA ARQUITETURA GOIANA

As primeiras manifestações de modernidade na arquitetura desenvolvida em Goiás, só vão se apresentar, nas décadas iniciais do século XX, com a chegada das primeiras composições ferroviárias, na região sudeste do estado.
Enquanto as demais regiões continuam a apresentar uma arquitetura de caráter mais tradicional com a representação de uma forma de construir e morar próprios do período colonial, as cidades do sudeste inovam, com o uso de materiais e técnicas diferenciadas, assim como com o emprego de um programa totalmente desconhecido dos goianos até então.
A implantação dos trilhos da Estrada de Ferro Goiás, no estado, desde sua primeira estação, no município de Catalão, provocou profundas alterações, a partir do momento em que seus primeiros edifícios – estações, galpões e residências de funcionários – passaram a demonstrar a possibilidade de se construir de forma diferenciada daquela tradicionalmente conhecida pelos goianos.
Estação de Tapiocanga, já demolida, utilizando materiais inovadores para Goiás.
A primeira inovação foi quanto ao uso do tijolo queimado em substituição ao adobe e a alvenaria de tijolo estruturada resolvendo de maneira satisfatória um trabalho que antes só era possível com o emprego de gaiolas de madeira. Permanece o uso de madeiramento apenas na cobertura, estruturando um telhado que apresenta, nesse momento, um ponto mais alto, exigido pelo novo tipo de telha utilizado. Passa a ser incorporada pela arquitetura desse período, a telha francesa, em substituição à tradicional telha capa-e-bica de quase dois séculos de uso na arquitetura goiana.
No piso, a mezanela, o tabuado corrido, a pedra e o chão batido, são substituídos pelo cimento queimado e pelo ladrilho hidráulico, assim como o estuque e o gesso passam a substituir a madeira na elaboração de forros, que deixam também de ser uma exclusividade dos compartimentos mais nobres da habitação para serem utilizados, em praticamente, todos os cômodos do edifício.
As primeiras construções desse período estão representadas pelos edifícios das estações ferroviárias, pelas casas dos funcionários e por galpões para depósitos de produtos. Posteriormente, com a intensificação dos meios de comunicação, representados pelo telégrafo, aparecimento do telefone, implantação de salas de cinema e principalmente do acesso que a população passou a ter a um considerável número de jornais e revistas publicados principalmente no Rio de Janeiro e São Paulo, também a arquitetura tanto residencial quanto comercial, passou a sofrer influências da modernidade arquitetônica em andamento, nos principais centros urbanos do país.
Localidades como Catalão e Ipameri, em um primeiro momento, e outras como Goiandira, Urutaí, Pires do Rio e Anápolis, posteriormente, recebem uma infinidade de edifícios com características ecléticas, representadas pelas referências neoclássicas, neogóticas – principalmente nas construções religiosas – neocoloniais, entre outras que, colocam essa região na posição de principal centro econômico e progressista do estado, em posição de destaque inclusive em relação à própria capital, Vila Boa.
Residência eclética em Catalão
De acordo com Borges (1990, p.121),

cidades como Catalão, Ipameri, Caldas Novas, Morrinhos e Corumbaíba receberam melhorias ou foram urbanizadas e logo passaram a contar com os benefícios das modernas invenções do mundo capitalista, como a energia elétrica, o cinema, o telefone e o telégrafo.

Assim, as cidades da região da estrada de ferro passam a se diferenciar das demais, por uma série de elementos inovadores e modernizantes, assim como passa apresentar uma arquitetura que vem inovar no uso de materiais, na forma como o edifício passa se relacionar com o terreno e, principalmente, na maneira como a planta da habitação se estrutura, propondo uma nova maneira de morar.
No mesmo período, algumas modificações passam a acontecer também na capital, com modificações significativas em sua arquitetura. Os edifícios públicos passam por uma série de alterações para que possam também apresentar alguns elementos de modernidade. Edifícios como o do Senado Estadual, do Mercado Municipal, do coreto, da antiga Casa de Fundição, recebem a aplicação de elementos decorativos em relevo, em suas fachadas, revestindo-se de uma modernidade que, entretanto, não alcança seus interiores.
Edifício onde funcionou a Casa de Fundição do ouro
Com isso, uma série de edifícios residenciais e comerciais começam e sofrer as mesmas influências, com a aplicação de elementos decorativos em suas fachadas, mantendo, no entanto, interiormente, a mesma organização tradicionalmente conhecida desde as décadas iniciais do século XVIII.
Ao observar as transformações ocorridas na arquitetura brasileira, a partir de finais do século XIX, Reis Filho (1976, p. 124-126), afirma que as modificações ocorridas, no interior dos edifícios, não interferiram na organização tradicionalmente conhecida até então, sendo conservadas a mesma implantação, mesma distribuição, mesmas técnicas construtivas e, em muitos casos, os mesmos profissionais. Ainda segundo esse autor, os elementos estruturais, pelo emprego corrente da terra como elemento construtivo, na forma de taipa-de-pilão, adobe e pau-a-pique, não permitiam a utilização de soluções mais complexas, como as colunatas, frontões ou escadarias. Sendo assim, os novos elementos decorativos a serem utilizados, restringiam-se à aplicação, nas fachadas, de platibandas, coroamentos com vasos e figuras de louça, e a substituição dos tradicionais arcos abatidos, pelos plenos, nas portas e janelas.
Com isso, o que se percebe, no caso da cidade de Goiás é que

essas modificações, surgem assim, com a aplicação de elementos das arquiteturas neoclássica e eclética nas fachadas das residências, sem, contudo, interferir na estrutura ou na organização interna desses edifícios. Aparecem então, em um primeiro momento, fachadas que se utilizam das platibandas, eliminando os beirais e sendo coroadas com pinhas e com vasos de louça colocados de forma a dar continuidade às falsas pilastras que passam a dividir, na vertical, as fachadas coloniais dos antigos edifícios, sem a presença de qualquer elemento decorativo ou em relevo. A utilização da cal nas fachadas, passa a ser substituída pela utilização de cores suaves, como o amarelo, o rosa, e o azul claro (Coelho, 2000, p. 53).

Em Ipameri, a partir de 1920, e até meados da década de 1930, uma infinidade de projetos arquitetônicos para edifícios residenciais vai ser desenvolvidos, apresentando um interessante repertório decorativo próprio da arquitetura eclética. Dentre eles, sobressaem-se as residências de Ataliba Bernardino, Olyntho Ribeiro, Albano Carvalho e Hormisdas de Carvalho.Para os edifícios comerciais, destacam-se os projetos desenvolvidos para Domingos Gomes, José Maltez, Bevinhati Salgado e Elias Miguel.

A residência de Hormisdas de Carvalho em Ipameri

O edifício residencial projetado, em 1924, por Waldemar Leone Ceva para o Sr. Hormisdas de Carvalho
Projeto de Waldemar Leone Ceva para o Sr. Hormisdas de Carvalho
 Apresenta todas as características de modernidade próprios do período, na região da estrada de ferro, em especial, na cidade de Ipameri.
Apresenta, como todos os edifícios dessa época, a cobertura, utilizando telha francesa, parcialmente escondida por uma platibanda decorada, dividida, como a fachada, em duas partes, apresentando cada uma delas, um desenho, definição de linhas e acabamento diferenciados. A parte da fachada correspondente ao escritório, se apresenta de certa forma mais sóbria que a outra, utilizando linhas retas no acabamento, o que é quebrado apenas pela forma circular que envolve a janela e os detalhes art nouveau da mesma. A parte correspondente à sala de visitas diferencia-se pelo excesso decorativo que vai da platibanda, na parte mais alta à janela gradeada do porão, que aparece aí em meio arco, contrastando com a forma retangular daquela correspondente ao escritório.
Aqui, já não aparece mais a porta de acesso, abrindo-se diretamente para a rua, mas para um jardim lateral, existindo como elemento intermediário, um alpendre, também lateral, estruturado em ferro fundido, decorado, cujo piso é revestido com ladrilho hidráulico.
A parte considerada nobre da residência, apresenta piso em madeira com detalhes no contorno, o que é indicado no desenho do projeto. Já as áreas correspondentes à cozinha, ao banheiro e despensa, por não apresentarem indicação do material a ser utilizado, levam à conclusão de que seria aí utilizado o cimento queimado simples.

Apesar de ainda se encontrar implantada no limite frontal do terreno, são largos os afastamentos laterais, sendo um deles, como já foi dito, utilizado para a implantação de um jardim, separado da via pública por uma pequena mureta com grade, o que facilita sua visualização por quem passa pela rua. O outro, fechado por muro alto, apresenta um portão largo, de madeira, utilizado provavelmente para acesso de serviço. 

sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

arquitetura em Goiás III

A AGROPECUÁRIA E A DETERMINAÇÃO DE NOVOS ESPAÇOS

O fim da mineração, como base econômica da capitania de Goiás, provocou sérias modificações, tanto na forma de organização e reestruturação das cidades aí existentes, quanto na maneira como foram estabelecidos os novos núcleos. E, em quaisquer desses centros urbanos, as edificações residenciais passaram a se apresentar, objetivando atender aos novos programas impostos pelas modificações que a sociedade começava a sofrer.
Não eram mais a irregularidade e a rápida ocupação de terrenos ao longo dos rios e estradas que determinavam o surgimento das cidades, mas uma outra forma de estruturação, tendo por base a doação de terras para a igreja ou para um determinado santo – os chamados Patrimônios – e a necessidade da população de se aglomerar, agora de forma mais organizada, junto a locais que pudessem favorecer o desenvolvimento de um comércio, mesmo que insipiente, baseado agora na agropecuária que, mesmo não visando um amplo comércio externo, como acontecia com outras regiões, era praticamente a única base econômica existente.
Assim, após o período de esgotamento da economia da mineração, a população de Goiás, em busca de novas atividades econômicas ou mesmo procurando formas diferenciadas de sobrevivência, praticamente se dispersou pelo campo, provocando um quase desaparecimento da vida urbana. O lento estabelecimento de uma nova forma de economia provocou, assim, a recuperação de alguns dos antigos núcleos mineradores que, de um modo geral, conseguiram sobreviver a esse êxodo. No geral, esses núcleos sempre representaram pontos de referência para a população estabelecida no campo, principalmente no que se refere a questões como religião, convivência social e comércio, sendo este último tanto para compra de ferramentas e gêneros importados como para a colocação de sua pequena produção ou mesmo como ponto de armazenamento, para posterior embarque do produto de exportação.
Alguns dos antigos núcleos remanescentes do período minerador, dentre eles Santa Luzia, Bonfim, Meia Ponte e mesmo Santa Cruz, experimentaram um novo surto de crescimento, relegando por completo a atividade mineradora e dando incentivo à agropecuária, como nova forma de desenvolvimento econômico.
Por outro lado, os núcleos, surgidos principalmente a partir da segunda década do século XIX, como Ipameri, Corumbaíba, Caldas Novas, Rio Verde e mesmo Bela Vista, começaram a ser implantados – como já foi visto – em decorrência da doação de terras, por parte de fazendeiros, para a formação do patrimônio de um santo, ou mesmo da igreja. Esse modelo de organização urbana, em torno de uma capela, construída através de doação, foi, a partir de então, até as primeiras décadas do século XX, a forma mais comum de surgimento de cidades em Goiás (Coelho, 1997, p.46-47). Implantados, em regiões de terra fértil, esses núcleos, cercados por inúmeras propriedades rurais, foram, em fins do século XIX e começo do XX, a base de sustentação da economia goiana.
No que se refere à estruturação dos novos centros, as populações começam a se estabelecer, agora, em torno de um ponto central, a praça da igreja, de onde partem as ruas, que são, a partir desse momento, em sua maioria, de melhor regularidade, com cruzamentos perpendiculares, mais largas e melhor estruturadas, o que, de certa forma, facilita o trânsito de veículos de tração animal como carroças e carros de bois, base do transporte dos novos produtos.
Com relação às edificações, ao longo de todo o século XIX, não serão observadas alterações, na forma de se construir, ou mesmo no que se refere à seleção e escolha de materiais para a elaboração dos edifícios. Questão fundamental vai ser a forma como o edifício se relaciona com o terreno e mesmo com o espaço urbano. Convém observar que

durante o século XIX, com a agropecuária, a necessidade de se limitar a testada dos lotes deixa de existir, o que vai provocar modificações até mesmo no que se refere à implantação de edifícios em relação às divisas. Continuam a ser construídas casas sobre os limites laterais do terreno, mas isso não é mais regra geral (Coelho, 1997, p. 47).

A partir de então, os novos programas promovem o aparecimento de edificações residenciais mais amplas, utilizando cada vez mais os afastamentos laterais. Com isso, começam a desaparecer, nessas novas edificações, a figura da alcova – quartos sem aberturas para o exterior – já que a forma como o edifício passa a se relacionar com o terreno permite a ventilação e iluminação de todos os cômodos da residência.
O estabelecimento de novas necessidades vem provocar também o aparecimento de novas formas de organização interna do edifício, relacionando a residência urbana com a atividade agropastoril de seu proprietário (Coelho, 1997, p. 48). Começa a aparecer os acessos laterais que, de certa forma alteram a relação entre o público e o privado, promovendo o surgimento de jardins, como espaço de transição entre a rua e o interior dos edifícios.
Entretanto, mesmo que uma série de alterações comecem a se processar, em decorrência principalmente desses novos programas e das novas necessidades surgidas, em decorrência das radicais modificações ocorridas na economia, é bom observar que as bases culturais da população pouco vai se alterar, sendo a organização interna dos edifícios, no que se relaciona às influências dessa mesma estruturação cultural, pouco modificada. A divisão interna das residências em setores preestabelecidos continua a acontecer, reproduzindo o que se percebe, na casa brasileira, desde os tempos iniciais da ocupação e colonização. É, ainda nesses edifícios, clara a divisão e separação das áreas íntima, social e de serviço, repetindo o tradicional isolamento da família em relação a qualquer visitante estranho ao dia-a-dia dos moradores.
O que se pode observar é a incorporação de uma série de novos compartimentos que de certa forma trazem para o dia-a-dia das famílias, as novas atividades econômicas desenvolvidas agora em toda a região. 

Residência representativa da agropecuária em Goiás

Como edifício representativo da arquitetura produzida no estado de Goiás, durante o século XIX, em decorrência da economia agropecuária, podemos ver, na cidade de Bela Vista, a residência conhecida como “Casa do Senador Canedo”.
A casa do Senador Canedo, em Bela Vista-GO.
É uma residência que apresenta, apesar das inovações impostas pela economia agropastoril, as mesmas técnicas construtivas e seleção de materiais comuns aos edifícios implantados no estado, no decorrer século XVIII, como conseqüência da economia mineradora. Apresentando estrutura autônoma de madeira aparente, possui paredes elaboradas em adobe, utilizando ainda a cobertura em telhas capa e bica de beiral simples apoiado em cachorros de madeira sem decoração.
Ainda representando as influências do século anterior, podemos ver as paredes de suas fachadas sendo utilizadas como limite da via pública, mesmo que o edifício já tenha sido implantado de forma diferenciada de seus predecessores setecentistas. No caso específico desse edifício, o acesso é ainda feito diretamente sobre a via pública, mesmo que o acesso lateral já seja, por essa época, de grande aceitação nas cidades goianas.
Os vãos, tanto de portas quanto de janelas, são elaborados com enquadramento de madeira; a vedação das janelas é feita em postigo sobreposto, com a parte externa elaborada em guilhotina de caixilho de vidro, apresentando ainda a folha interna cega, com duas folhas montadas em calha. As portas, todas montadas em calha, são, assim como as janelas, os únicos elementos da fachada do edifício a receber cor, já que as paredes são todas caiadas de branco, como se fazia tradicionalmente nos núcleos urbanos mais antigos.
A cobertura elaborada, em telha canal, apóia-se também em estrutura de madeira travada em pontaletes que sustentam e definem a orientação das cargas rumo à estrutura básica do edifício.
Planta da casa do Senador Canedo, em Bela Vista.

A casa mantém atualmente 17 dos 21 cômodos originais, número definido principalmente em função da relação existente entre o uso do edifício não só como residência, mas também como espaço de serviço e depósito intermediário entre a atividade rural própria da época e o local de consumo do produto resultante dessa atividade, que era a própria cidade. Entre esses, encontram-se um salão que já foi utilizado como comércio, escola e sede de um jornal. Nos fundos, um quarto de doces e um de queijo, demonstram a relação direta existente entre o edifício e a economia agropecuária da época.

quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

arquitetura em Goiás II

A CASA URBANA DO PERÍODO MINERADOR EM GOIÁS

Quando da determinação real para que se implantasse uma vila, na capitania de Goiás, a ser desmembrada da de São Paulo, a Carta Régia que instruía tal fundação orientava para que as residências  a serem aí edificadas se pautassem por uma certa padronização em seu exterior, mesmo que, pelo interior, cada uma fosse feita ao gosto de seu proprietário. Entretanto, essa padronização que pode ser ainda hoje observada nas fachadas das casas goianas do período colonial, principalmente aquelas edificadas na antiga capital, estendeu-se para seu interior, fazendo com que se encontrassem aí, dois modelos básicos de planta.
o modelo de residência denominado "meia morada"

O primeiro desses modelos, conhecido como “meia-morada”, se desenvolve como conseqüência do melhor aproveitamento de terrenos consideravelmente estreitos, com testadas que apresentam dimensões variando entre seis e oito metros de largura. Como resultado do aproveitamento de tais medidas surge

um padrão de certa forma constante, segundo o qual a planta se organiza a partir de um corredor lateral, paralelo a um dos limites longitudinais do terreno, com os cômodos se desenvolvendo ao longo de sua extensão. Sendo assim, em um primeiro plano temos a sala, representando o espaço intermediário entre o exterior e o interior da casa. Em seguida vêm os quartos, ou alcovas, tendo aos fundos a varanda, que é uma sala de convivência que ocupa geralmente toda a largura posterior dessa parte do edifício, sendo o espaço da casa onde, preferencialmente, ficavam as mulheres (Coelho, 2001, p.205).

O segundo modelo de residência encontrado em Vila Boa e considerado como padrão construtivo de melhor organização, objetivando atender a uma família mais numerosa, é conhecido como “morada inteira”, e corresponde, em dimensões, a uma duplicação da planta do primeiro modelo, passando o corredor a se apresentar em posição central, não alterando, no entanto, sua função como eixo distribuidor.
outro modelo: a "morada inteira"

Quanto à organização interna e distribuição da planta da nova casa urbana encontrada nas regiões de mineração, é possível perceber claramente uma organização espacial diversa daquela encontrada na casa rural desenvolvida pelos paulistas, guardando, entretanto o novo modelo, a mesma representação determinada pela organização familiar e cultural do colonizador. Isso é claro, dentro de um novo contexto social e econômico, além de novas referências técnicas e construtivas.
Ao estudar as residências rurais representativas da arquitetura bandeirista, Carlos Lemos (1999, p. 21) faz, como já vimos, referência ao fato de não haverem se modificado, ao longo de duzentos e cinqüenta anos de ocupação do interior paulista. A mesma observação pode ser feita quando se estuda as edificações representativas, tanto da arquitetura urbana quanto rural desenvolvidas no interior goiano, no decorrer dos séculos XVIII e XIX. Tanto as técnicas construtivas quanto os materiais empregados e o programa de necessidades permanecem os mesmos, com raríssimas e pequenas alterações.
Exemplo claro desse processo de organização do espaço residencial, em Goiás, pode ser visto no conjunto representado pela residência e respectivo anexo de propriedade do Senador Antonio – Totó – Caiado, considerado como uma propriedade semi-rural na periferia da antiga capital do estado, composto de uma residência principal e outra, de caráter secundário, construída posteriormente para abrigar empregados de suas fazendas e que, com o crescimento de sua família, passou a ser utilizada pelos filhos rapazes.
Iniciando o estudo pela planta de situação, podemos perceber duas formas diferenciadas de implantação, estando o edifício principal estabelecido no terreno de forma totalmente aleatória, como é próprio das construções rurais – as sedes de fazendas ou mesmo de chácaras, como é o caso. É possível perceber aí a preocupação em estabelecer o edifício próximo a um curso d’água, no caso o Córrego da Prata, além de estar sua fachada principal voltada para o Norte, que no caso, coincide com a localização da cidade em relação ao terreno.
implantação dos edifícios no terreno

O segundo edifício, já com características urbanas, apresenta-se implantado na testada do terreno, no limite da via pública, provavelmente inexistente quando da construção do primeiro edifício. Extremamente simples e rústica e preservada em sua integridade até hoje, mostra bem a forma despretensiosa e despojada com que o importante líder político de então vivia, juntamente com sua família.
Temos assim, no conjunto, um edifício que em sua implantação apresenta uma série de elementos e características das construções rurais e outro, representativo da arquitetura urbana, ambas próprias do que se construía, em Goiás, no período colonial.


Edifício principal
    
O edifício principal, conhecido como sendo a residência oficial de Totó Caiado, na antiga capital, é uma construção que se caracteriza, em todos os sentidos, pelo que se conhece hoje como representativo da arquitetura colonial, unindo elementos tanto da produção urbana quanto rural.
 o edifício principal do conjunto

Apresenta sua estruturação toda em madeira, com paredes elaboradas, em adobe, servindo exclusivamente como vedação. A cobertura está estruturada em quatro águas, no corpo principal, e apenas uma no puxado, com rincão transversal, utilizando a forma mais comum de cobertura, no período colonial, que é a telha capa-e-bica[1]. Convém observar que em decorrência do clima e das altas temperaturas encontradas, na antiga Vila Boa, na maior parte do ano, a telha vã é a forma de cobertura que melhor atende às necessidades de conforto da população, proporcionando uma climatização agradável, no interior das residências, em oposição ao que se encontra em seu exterior. Sendo assim, em alguns edifícios, é possível perceber o uso de forro em apenas alguns cômodos, considerados mais nobres. No edifício, em estudo, o forro não aparece em nenhum dos compartimentos.
A planta desse edifício se organiza de acordo com o padrão encontrado na casa urbana, conhecida como “morada inteira”, onde aparece um corredor central que estrutura e promove a distribuição e acesso aos cômodos aí existentes. Faz, esse corredor, a ligação entre o pátio situado na parte anterior da edificação e a varanda que, como já foi visto, é a sala de convivência da família, onde se desenvolvem os trabalhos domésticos, as refeições e reuniões. Compõem ainda, o bloco principal do edifício, os compartimentos destinados aos quartos do proprietário, assim como de suas filhas. Os rapazes, é sabido, passaram a utilizar o segundo edifício.
Alguns dos elementos constitutivos desse modelo de habitação – tanto urbano quanto rural – se reproduzem de tal modo pelo território colonial que passam a ser entendidos, por grande parte dos historiados da arquitetura brasileira como representativos de uma certa homogeneidade, ou mesmo imutabilidade. Discutindo esse assunto, dizem Vaz e Zarate (2003, p. 73), que

essa homogeneidade se manifesta fundamentalmente na presença do corredor, elemento estruturador do espaço, e no desenvolvimento do programa básico no interior  de formas quadrangulares e retangulares. Essa clareza geométrica é, por vezes, interrompida por imposição do formato do terreno ou dos acréscimos posteriores que não rompem o esquema básico tradicional.

Quanto à questão da estruturação dos edifícios urbanos, convém lembrar que existiam, no período colonial, duas formas de organização interna das residências. Partindo do princípio básico das dimensões do lote, onde os mais estreitos, cujas testadas estavam reduzidas a seis ou oito metros, as residências se organizavam, segundo Suzy de Mello (1985, p. 98),

em plantas geradas a partir da própria configuração dos terrenos, tendo um corredor – paralelo aos limites laterais do terreno – como eixo longitudinal e que ia da rua ao quintal. Na frente situava-se a sala, no centro os quartos (ou alcovas), ao fundo uma espécie de “sala familiar” – correspondente ao estar íntimo de hoje – onde preferencialmente ficavam as mulheres. Seguiam-se puxados para a cozinha e a senzala e depois o quintal. No caso de famílias maiores geralmente era feito um simples rebatimento (ou duplicação) da planta usual, passando o corredor, então a ser central.

E é exatamente essa forma duplicada de organização estrutural do edifício residencial urbano que vai ser utilizado na elaboração da casa principal da chácara de Totó Caiado, reproduzindo claramente uma série de elementos de caráter tanto social quanto cultural, formadores da personalidade do brasileiro de então.
O que realmente diferencia essa sede de chácara de uma residência eminentemente urbana é o fato de apresentar aberturas para iluminação e ventilação em praticamente todos os cômodos, o que dificilmente acontece naquele. Os quartos situados, na parte anterior do edifício, apresentam aberturas tanto na fachada quanto na lateral. Os quartos situados, na seqüência, apresentam uma janela cada e a varanda, seis janelas, em três de suas quatro paredes. No anexo, apenas a despensa não apresenta janela para o exterior, o que aparece inclusive no banheiro, adaptado na parte posterior da cozinha.
Planta do edifício principal

Existe, nesse edifício, um segundo banheiro, acrescido em tempo posterior, facilmente identificável por estar fora do perímetro original da construção.
Sendo a arquitetura goiana do período colonial considerada de extrema simplicidade, passa a ser vista como uma preocupação quase que erudita, a forma totalmente equilibrada com que as aberturas se apresentam na fachada principal desse edifício, com duas janelas de cada lado da porta principal de acesso, estando bem proporcionadas as dimensões dos espaços cheios e vazios, o que, de certa forma, centraliza as aberturas em relação ao vigamento da fachada.
Quanto à organização dos vãos em relação à composição das fachadas dos edifícios residenciais próprios do período colonial, dizem Vaz e Zarate (2003, p. 61) que

na composição das fachadas os vãos exercem papel fundamental, porque são eles que conferem ritmos e contrastes, definidos pelas relações claro-escuro, cheio-vazio e pelos acabamentos mais primorosos. As sobrevergas, venezianas, rótulas e guilhotinas são elementos associados aos vãos e reforçam esta atribuição compositiva que eles exercem. A madeira é o material empregado em todos os componentes até à introdução das molduras em argamassa.

Apesar de toda a simplicidade com que se apresenta esse edifício, é possível perceber, nas janelas da varanda, o emprego de venezianas e mesmo de bandeira com quadros para a colocação de vidros.
Em seu interior, várias modificações podem ser observadas, com é o caso da substituição do piso original – provavelmente de tabuado – do corredor, de dois quartos e da varanda, por piso cerâmico (ladrilho hidráulico) de uso corrente em meados do século XX. Também o corpo anexo teve seu piso substituído, se bem que por outro não tão nobre quando aquele implantado no bloco principal. Nessa região, foi utilizado o cimento queimado, mais indicado para áreas molhadas. Apenas dois dos quatro quartos que compõem essa residência tiveram seu piso original preservado.
Apesar de não representar uma residência de caráter urbano, o edifício demonstra claramente a forma urbana de morar e viver. 

Edifício secundário

O segundo edifício que compõe o conjunto apresenta a mesma forma de organização e distribuição encontrado no anterior. Representativo do mesmo modelo, conhecido como “morada inteira”, difere do edifício principal pelo fato de apresentar apenas três janelas na fachada, contra as quatro daquele outro. 
Fachada do edifício secundário, voltada para a via pública

Um dos elementos que identificam esse segundo edifício como representativo da arquitetura residencial urbana é o fato de não apresentar aberturas nas laterais, o que faz com os quartos localizados, na parte central da edificação, não têm janelas para iluminação e ventilação. De acordo com Vaz e Zarate (2003, p. 167), na arquitetura tradicional goiana

não se podem notar indicadores formais de características regionais exclusivas. As casas construídas são todas muito semelhantes. Mesmo quando as pequenas alterações ornamentais foram introduzidas nas regiões nordeste e sul (objetos de estudo e análise) por agentes construtores de origem diversa (baianos e mineiros, respectivamente) as semelhanças prevalecem tanto na organização espacial das plantas baixas, nos sistemas construtivos como nas ornamentações.

Tal colocação, que se apresenta como uma observação geral sobre a casa tradicional brasileira, tem na frase de Vauthier (1975, p. 37), sua maior expressividade. De acordo com esse estudioso de nossa arquitetura vernacular, “quem viu uma casa brasileira, viu quase todas”.
Planta do edifício secundário
Nesse caso, sendo o edifício representativo da arquitetura residencial urbana, vai aparecer também como elemento diferenciador, em relação ao edifício rural, a cobertura estruturada em apenas duas águas, no corpo principal, caindo uma para a rua e a outra para a parte posterior da edificação. Quanto a essa forma de organização da cobertura, diz Suzy de Mello (1985, p. 98), que, no geral, as edificações se estabeleciam ao longo da via pública, elaboradas

por sua vez “parede-meia”, ou seja, unidas nos seus limites laterais, ensejando a utilização de coberturas de duas águas que, caindo para a rua e para os quintais, davam escoamento natural para as águas pluviais.

De acabamento inferior, apresenta o piso em chão batido, sem uso de revestimento em qualquer dos cômodos. Também o bloco de serviços se apresenta de maneira diferente, sendo ocupado apenas pela cozinha, não apresentando nem o tradicional depósito de mantimentos – despensa – e nem o banheiro, comumente adaptado. Aliás, esse edifício não apresenta banheiro, sendo por isso mesmo, de dimensões reduzidas. Aparece aí um fogão à lenha associado a um forno – do tipo empregado para assar biscoitos – que geralmente é encontrado do lado de fora da residência.
Percebe-se, nesses dois edifícios, a representação de tudo o que se conhece como o desenvolvimento da maneira de viver e morar da população goiana, que, de certa forma reproduz seu processo de organização social e cultural, herdada da tradição própria da população que primeiramente ocupou e colonizou o território goiano, no período de tempo, compreendido pelos séculos XVIII e XIX.



[1] Utilizada ainda hoje, em praticamente todo o interior do estado, a telha capa-e-bica, também conhecida como telha canal ou telha colonial, apresenta formato de meio cone e é produto de fabricação artesanal, elaborada, no mais das vezes, no próprio local da construção. Já recebeu também o nome de telha mourisca, como referência às suas raízes mouras. 

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

ARQUITETURA EM GOIÁS I



A ARQUITETURA EM GOIÁS E SUAS PRIMEIRAS INFLUÊNCIAS

            A história da ocupação territorial no Brasil tem na arquitetura rural desenvolvida nos três primeiros séculos, um dos principais fatores de integração e desenvolvimento, servindo de base para a evolução de uma arquitetura urbana de características  próprias, além de apoiar tanto o estudo quanto o conhecimento de toda a organização não só espacial por que passou o colonizador português em território americano, como também em todos os aspectos da formação da nacionalidade brasileira.
A arquitetura de caráter rural implantada pelo colonizador no decorrer do período colonial apresenta dois momentos principais de desenvolvimento, representados, o primeiro no nordeste, pela casa grande dos engenhos de açúcar, da Capitania de Pernambuco, e o segundo, bem mais ao sul, mais precisamente na Capitania de São Vicente – atual estado de São Paulo – pela chamada “casa bandeirista”, que como aquela, se reveste de considerável importância histórica, ao representar um momento de grande relevância para o nosso desenvolvimento.
Casa do Pe. Inácio em Cotia-SP, exemplo de Casa Bandeirista.
Para uma maior compreensão do processo de ocupação do território goiano, no período representado pelos séculos XVIII e XIX, vai ser de real interesse, apenas o segundo modelo construtivo, já que é a arquitetura que melhor pode representar o ponto de partida utilizado pelos bandeirantes que, saindo de seu território de domínio, no interior paulista, vieram desbravar e ocupar as regiões produtoras de metais preciosos de Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso.
Elaborados inicialmente, com o uso da taipa-de-pilão, esses edifícios apresentam a organização espacial interna como um reflexo da forma como seu construtor e usuário se organiza, a partir de certas determinantes culturais que vão demonstrar a clara evolução de uma série de fenômenos que se processavam, estruturando a própria sociedade bandeirista.[1]
Tais determinantes vão marcar não só a arquitetura produzida em território paulista, como também aquela desenvolvida nas principais áreas sob sua influência, notadamente as regiões mineradoras descobertas a partir dos momentos finais do século XVII.

Forma de organização interna da Casa Bandeirista

A divisão do espaço interno dessas edificações em faixas e a existência de uma sala de convivência familiar demonstram bem a forma como as determinantes sócio-culturais aí se estabelecem, com a hierarquização do trabalho doméstico e a segregação da mulher em relação ao contato com visitantes e desconhecidos, principalmente aqueles do sexo masculino. A análise de tais edifícios deixa, no entanto, uma certa preocupação ao se constatar a ausência de espaço destinado às atividades de cozinha e serviços correlatos, o que não encontra similar em nenhum outro modelo.
Uma constante característica desse tipo de edifício rural, foi a escolha do

local onde se assentava a residência e o próprio modo de agenciá-la num determinado terreno. Em primeiro lugar, sempre se dava preferência a um ponto situado a meia encosta da paisagem (Saia, 1978, p. 67).

estando invariavelmente voltado para o norte e próximo a um curso d’água.
Temos, portanto que, ainda segundo Luis Saia (1978, p. 130-131), o modelo característico da arquitetura paulista dos primeiros séculos se apresenta instalada invariavelmente dentro de um

retângulo, com paredes de taipa-de-pilão, telhado de quatro águas e cobertura com telha de canal. Prefere sempre uma plataforma natural ou artificial, à meia encosta, nas proximidades de um riacho. A planta se desenvolve segundo um esquema preciso: uma faixa social, fronteira, contém a capela e o quarto de hóspedes e, no meio, o alpendre; atrás dessa faixa e em correspondência com as divisões dela, em torno de uma faixa central os quartos se dispõem lateralmente. Às vezes, no fundo, comparece um agenciamento de serviço, dando acesso ao pavimento superior.

Considera-se, no caso, como pavimento superior, o aproveitamento do pé-direito relativo aos quartos, entre o forro e o telhado, utilizado geralmente para o armazenamento de cereais.
É fácil perceber, ao se observar a planta do conjunto de edifícios remanescentes desse modelo, encontrado ainda hoje em território paulista, a grande semelhança em sua estrutura construtiva, demonstrando um número irrisório de diferenças, não aparecendo aí nada que seja realmente de grande consideração. De acordo com Lemos (1999, p. 21),

um fato é certo: por mais de duzentos e cinqüenta anos a planta e mesmo o partido arquitetônico da casa roceira colonial paulista da bacia do Tietê não tiveram alterações significativas, o que indica não ter havido mudanças no modo de morar, isto é, não terem ocorrido variações no programa de necessidades, o que indica, antes de tudo, uma estabilidade social em que as expectativas de ordem cultural mantiveram-se plenamente satisfeitas e imutáveis. Por duzentos e cinqüenta anos uma sociedade segregada serra acima usando a mesma casa. Mesma casa e mesma técnica construtiva.

Das determinantes culturais, a segregação familiar e o acolhimento cordial, das técnicas construtivas, a taipa-de-pilão, definindo a argila como material de fundamental importância.


A INTERIORIZAÇÃO DA ARQUITETURA

Com a descoberta do ouro, na região de Minas Gerais, nos anos finais do século XVII, houve uma verdadeira corrida de considerável número de aventureiros aos locais onde o metal era encontrado, podendo ser identificados mineradores vindos não só das mais diversas regiões da colônia, como também da metrópole. Ao passar por essa região, já iniciado o século XVIII, diz o padre Antonil (1982, p. 167) que a

cada ano, vêm nas frotas quantidade de portugueses e de estrangeiros, para passarem às minas. Das cidades, vilas, recôncavos e sertões do Brasil, vão brancos, pardos e pretos, e muitos índios, de que os paulistas se servem. A mistura é de toda a condição de pessoas: homens e mulheres, moços e velhos, pobres e ricos, nobres e plebeus, seculares e clérigos, e religiosos de diversos institutos, muitos dos quais não tem do Brasil convento nem casa.

Esse afluxo populacional vai provocar o surgimento de uma infinidade de núcleos urbanos, muitos deles de duração efêmera, já que a maioria existiu enquanto o ouro era conquistado em quantidades compensadoras. Nesse momento, a vida na colônia, de feições puramente rurais, passa radicalmente a urbana, provocando alterações profundas na forma de organização e do relacionamento entre a população da colônia.
A implantação desses novos núcleos provocou a necessidade de se repensar o modelo, as técnicas e os materiais construtivos utilizados pelos paulistas, baseada principalmente em duas questões fundamentais: a primeira estaria relacionada ao fato de ser a experiência paulista com a construção quase que restrita à arquitetura rural, sendo o novo momento construtivo representado pela produção urbana, onde necessidades antes relevadas começam a se colocar como fundamentais na determinação de um novo programa. Outra questão de fundamental importância estaria relacionada aos custos e ao tempo empregado na construção, dentro dos moldes característicos da arquitetura paulista.
É então abandonada a taipa-de-pilão, como método construtivo básico, passando as novas edificações a serem elaboradas em decorrência de novas influências portuguesas, com a utilização agora, de uma estrutura autônoma de madeira[2], formando gaiolas, com as paredes, de adobe ou pau-a-pique servindo basicamente como elemento de vedação.
Também, nesse novo modelo, é clara a divisão do edifício em faixas – como ocorre na casa bandeirista – mesmo que a distribuição e uso dos ambientes ocorra de forma diferenciada. Percebe-se agora, o aparecimento de novos compartimentos e, compondo a faixa de serviços, o uso de espaço destinado à cozinha, além de um depósito para alimentos, mesmo que se apresentando de forma um tanto segregada, implantada, em um bloco anexo, que, definitivamente, não compõe o volume nobre da edificação.
Plantas das casas denominadas "meia morada" e "morada inteira"

Equivalente à sala íntima da casa bandeirista, tanto em localização quanto em uso, é possível perceber nessa nova casa urbana, de acordo com Lemos (1993, p. 103) a

grande sala familiar, na varanda, também chamada sala de jantar. A sala-praça, passagem obrigatória entre a rua e a cozinha ou o quintal. A sala onde desembocava o corredor vindo da rua, por onde transitava a criadagem, carregando os potes de água, a lenha dos fogões, os mantimentos, os animais domésticos. Sala onde a família ficava reunida, nas horas de lazer e nos momentos de trabalho caseiro. Sala íntima, antes de tudo, local de acesso às alcovas escuras e, portanto, local de passagem obrigatória dos urinóis pejados dos excretos noturnos.

Vale a pena observar que, no geral, a escassez de terreno urbano para ser ocupado por essa nova população urbana, contribui também para que os lotes sejam definidos com dimensões reduzidas em suas testadas. Isso vai, juntamente com uma série de determinações oficiais, promover uma certa padronização no número de aberturas, na altura dos edifícios e principalmente no alinhamento em relação às vias públicas. Tais questões, de acordo com Reis Filho (1976, p. 24)

revelam uma preocupação de caráter formal, cuja finalidade era, em grande parte, garantir para as vilas e cidades brasileiras uma aparência portuguesa. As repetições não ficavam porém somente nas fachadas. Pelo contrário, mostrando que os padrões oficiais apenas vinham completar uma tendência espontânea, as plantas, deixadas ao gosto dos proprietários, apresentavam sempre uma surpreendente monotonia.

Tais padronizações faziam com que, para um melhor aproveitamento dos espaços, as casas fossem construídas parede-meia, o que, por sua vez faz com que as aberturas para ventilação e iluminação fiquem restritas ao sentido longitudinal da edificação. A união das características impressas nesses modelos de habitação, a casa bandeirista e a casa urbana do período minerador vai determinar em grande parte a forma como se apresenta a arquitetura rural goiana. Isso é claro, a partir de uma visão ainda não aprofundada, considerando que para uma afirmação conclusiva, inúmeros são os aspectos que ainda serão necessários avaliar.
Grosso modo podemos perceber espaços que sob certa ótica representam adaptações a novas necessidades, em relação aos usos encontrados nos modelos anteriores.
No novo edifício, a sala pode facilmente ser entendida como uma adaptação do alpendre bandeirista, assim como o primeiro quarto como sendo o quarto de hóspedes daquela. A capela, terceiro elemento de composição da faixa fronteira da casa paulista é então eliminada do edifício, ficando agora no arraial, que, segundo Suzy de Mello (1985, p. 225) está invariavelmente muito próximo, o que, em hipótese alguma vem justificar a instalação de um espaço destinado a atividades religiosas dentro de uma propriedade rural que não se encontra mais tão distante do núcleo urbano.
A sala maior situada na faixa íntima apresenta o mesmo uso já encontrado no salão central da casa paulista, assim como na varanda da casa urbana, e a cozinha, apesar de já haver conquistado grau de importância, encontra-se ainda instalada, de forma até certo ponto segregada, em relação ao volume total do edifício, na parte posterior e com o piso em nível mais baixo que o daquele.
A terceira faixa, seguindo a organização bandeirista, acontece de forma diferente. Enquanto, no primeiro caso, está representada pelo conjunto de alpendre de serviço e depósitos, nos outros dois modelos – casa urbana e rural da região mineradora – engloba a cozinha e o depósito de mantimentos (a despensa) que posteriormente tem sua área dividida para dar lugar à instalação de um banheiro.



[1] Tanto os estudos de Luis Saia, quanto os de Carlos Lemos consideram que a forte estruturação sócio-cultural do habitante do planalto de Piratininga determinam de forma plena e incontestável, a organização da “casa bandeirista”, não só na rígida estruturação e distribuição interna, como também na seleção e uso de materiais e técnicas construtivas.
[2] Técnica conhecida pelo nome de FRONTAL, que em outras regiões da colônia estava vinculada quase que exclusivamente ao uso do pau-a-pique, mas que em Goiás, sempre esteve relacionado principalmente à utilização do adobe, como elemento de vedação.