A CASA URBANA DO PERÍODO MINERADOR EM
GOIÁS
Quando da determinação real para que se implantasse uma vila, na
capitania de Goiás, a ser desmembrada da de São Paulo, a Carta Régia que
instruía tal fundação orientava para que as residências a serem aí edificadas se pautassem por uma
certa padronização em seu exterior, mesmo que, pelo interior, cada uma fosse
feita ao gosto de seu proprietário. Entretanto, essa padronização que pode ser
ainda hoje observada nas fachadas das casas goianas do período colonial,
principalmente aquelas edificadas na antiga capital, estendeu-se para seu
interior, fazendo com que se encontrassem aí, dois modelos básicos de planta.
o modelo de residência denominado "meia morada"
O primeiro desses modelos, conhecido como “meia-morada”, se
desenvolve como conseqüência do melhor aproveitamento de terrenos
consideravelmente estreitos, com testadas que apresentam dimensões variando
entre seis e oito metros de largura. Como resultado do aproveitamento de tais
medidas surge
um padrão de certa forma constante, segundo o qual a planta se organiza a partir de um corredor lateral, paralelo a um dos limites longitudinais do terreno, com os cômodos se desenvolvendo ao longo de sua extensão. Sendo assim, em um primeiro plano temos a sala, representando o espaço intermediário entre o exterior e o interior da casa. Em seguida vêm os quartos, ou alcovas, tendo aos fundos a varanda, que é uma sala de convivência que ocupa geralmente toda a largura posterior dessa parte do edifício, sendo o espaço da casa onde, preferencialmente, ficavam as mulheres (Coelho, 2001, p.205).
O segundo modelo de residência encontrado em Vila Boa e considerado como
padrão construtivo de melhor organização, objetivando atender a uma família
mais numerosa, é conhecido como “morada inteira”, e corresponde, em dimensões, a
uma duplicação da planta do primeiro modelo, passando o corredor a se
apresentar em posição central, não alterando, no entanto, sua função como eixo
distribuidor.
outro modelo: a "morada inteira"
Quanto à organização interna e distribuição da planta da nova casa urbana
encontrada nas regiões de mineração, é possível perceber claramente uma
organização espacial diversa daquela encontrada na casa rural desenvolvida
pelos paulistas, guardando, entretanto o novo modelo, a mesma representação
determinada pela organização familiar e cultural do colonizador. Isso é claro,
dentro de um novo contexto social e econômico, além de novas referências
técnicas e construtivas.
Ao estudar as residências rurais representativas da arquitetura
bandeirista, Carlos Lemos (1999,
p. 21) faz, como já vimos, referência ao fato de não haverem se modificado,
ao longo de duzentos e cinqüenta anos de ocupação do interior paulista. A mesma
observação pode ser feita quando se estuda as edificações representativas,
tanto da arquitetura urbana quanto rural desenvolvidas no interior goiano, no
decorrer dos séculos XVIII e XIX. Tanto as técnicas construtivas quanto os
materiais empregados e o programa de necessidades permanecem os mesmos, com
raríssimas e pequenas alterações.
Exemplo claro desse processo de organização do espaço residencial, em
Goiás, pode ser visto no conjunto representado pela residência e respectivo
anexo de propriedade do Senador Antonio – Totó – Caiado, considerado como uma
propriedade semi-rural na periferia da antiga capital do estado, composto de
uma residência principal e outra, de caráter secundário, construída
posteriormente para abrigar empregados de suas fazendas e que, com o
crescimento de sua família, passou a ser utilizada pelos filhos rapazes.
Iniciando o estudo pela planta de situação, podemos
perceber duas formas diferenciadas de implantação, estando o edifício principal
estabelecido no terreno de forma totalmente aleatória, como é próprio das
construções rurais – as sedes de fazendas ou mesmo de chácaras, como é o caso.
É possível perceber aí a preocupação em estabelecer o edifício próximo a um
curso d’água, no caso o Córrego da Prata, além de estar sua fachada principal
voltada para o Norte, que no caso, coincide com a localização da cidade em
relação ao terreno.
implantação dos edifícios no terreno
O segundo edifício, já com características urbanas, apresenta-se
implantado na testada do terreno, no limite da via pública, provavelmente
inexistente quando da construção do primeiro edifício. Extremamente simples e
rústica e preservada em sua integridade até hoje, mostra bem a forma
despretensiosa e despojada com que o importante líder político de então vivia,
juntamente com sua família.
Temos assim, no conjunto, um edifício que em sua implantação apresenta
uma série de elementos e características das construções rurais e outro,
representativo da arquitetura urbana, ambas próprias do que se construía, em
Goiás, no período colonial.
Edifício principal
O edifício principal, conhecido como sendo a residência oficial de Totó
Caiado, na antiga capital, é uma construção que se caracteriza, em todos os sentidos,
pelo que se conhece hoje como representativo da arquitetura colonial, unindo
elementos tanto da produção urbana quanto rural.
o edifício principal do conjunto
Apresenta sua estruturação toda em madeira, com paredes elaboradas, em
adobe, servindo exclusivamente como vedação. A cobertura está estruturada em
quatro águas, no corpo principal, e apenas uma no puxado, com rincão
transversal, utilizando a forma mais comum de cobertura, no período colonial,
que é a telha capa-e-bica[1].
Convém observar que em
decorrência do clima e das altas temperaturas encontradas, na antiga Vila Boa,
na maior parte do ano, a telha vã é a forma de cobertura que melhor atende às
necessidades de conforto da população, proporcionando uma climatização
agradável, no interior das residências, em oposição ao que se encontra em seu
exterior. Sendo assim, em alguns edifícios, é possível perceber o uso de forro
em apenas alguns cômodos, considerados mais nobres. No edifício, em estudo, o
forro não aparece em nenhum dos compartimentos.
A planta desse edifício se organiza de acordo com o padrão encontrado na
casa urbana, conhecida como “morada inteira”, onde aparece um corredor central
que estrutura e promove a distribuição e acesso aos cômodos aí existentes. Faz,
esse corredor, a ligação entre o pátio situado na parte anterior da edificação
e a varanda que, como já foi visto, é a sala de convivência da família, onde se
desenvolvem os trabalhos domésticos, as refeições e reuniões. Compõem ainda, o
bloco principal do edifício, os compartimentos destinados aos quartos do
proprietário, assim como de suas filhas. Os rapazes, é sabido, passaram a
utilizar o segundo edifício.
Alguns dos elementos constitutivos desse modelo de habitação – tanto
urbano quanto rural – se reproduzem de tal modo pelo território colonial que
passam a ser entendidos, por grande parte dos historiados da arquitetura
brasileira como representativos de uma certa homogeneidade, ou mesmo
imutabilidade. Discutindo esse assunto, dizem Vaz e Zarate (2003, p. 73), que
essa
homogeneidade se manifesta fundamentalmente na presença do corredor, elemento
estruturador do espaço, e no desenvolvimento do programa básico no
interior de formas quadrangulares e
retangulares. Essa clareza geométrica é, por vezes, interrompida por imposição
do formato do terreno ou dos acréscimos posteriores que não rompem o esquema
básico tradicional.
Quanto à questão da estruturação dos edifícios urbanos, convém lembrar
que existiam, no período colonial, duas formas de organização interna das
residências. Partindo do princípio básico das dimensões do lote, onde os mais
estreitos, cujas testadas estavam reduzidas a seis ou oito metros, as
residências se organizavam, segundo Suzy de Mello (1985, p. 98),
em
plantas geradas a partir da própria configuração dos terrenos, tendo um
corredor – paralelo aos limites laterais do terreno – como eixo longitudinal e
que ia da rua ao quintal. Na frente situava-se a sala, no centro os quartos (ou
alcovas), ao fundo uma espécie de “sala familiar” – correspondente ao estar
íntimo de hoje – onde preferencialmente ficavam as mulheres. Seguiam-se puxados
para a cozinha e a senzala e depois o quintal. No caso de famílias maiores
geralmente era feito um simples rebatimento (ou duplicação) da planta usual,
passando o corredor, então a ser central.
E é exatamente essa forma duplicada de organização estrutural do edifício
residencial urbano que vai ser utilizado na elaboração da casa principal da
chácara de Totó Caiado, reproduzindo claramente uma série de elementos de
caráter tanto social quanto cultural, formadores da personalidade do brasileiro
de então.
O que realmente diferencia essa sede de chácara de uma residência
eminentemente urbana é o fato de apresentar aberturas para iluminação e
ventilação em praticamente todos os cômodos, o que dificilmente acontece
naquele. Os quartos situados, na parte anterior do edifício, apresentam
aberturas tanto na fachada quanto na lateral. Os quartos situados, na seqüência,
apresentam uma janela cada e a varanda, seis janelas, em três de suas quatro
paredes. No anexo, apenas a despensa não apresenta janela para o exterior, o que aparece
inclusive no banheiro, adaptado na parte posterior da cozinha.
Planta do edifício principal
Existe, nesse edifício, um segundo banheiro, acrescido em tempo
posterior, facilmente identificável por estar fora do perímetro original da
construção.
Sendo a arquitetura goiana do período colonial considerada de extrema
simplicidade, passa a ser vista como uma preocupação quase que erudita, a forma
totalmente equilibrada com que as aberturas se apresentam na fachada principal
desse edifício, com duas janelas de cada lado da porta principal de acesso,
estando bem proporcionadas as dimensões dos espaços cheios e vazios, o que, de
certa forma, centraliza as aberturas em relação ao vigamento da fachada.
Quanto à organização dos vãos em relação à composição das fachadas dos
edifícios residenciais próprios do período colonial, dizem Vaz e Zarate (2003, p. 61) que
na
composição das fachadas os vãos exercem papel fundamental, porque são eles que
conferem ritmos e contrastes, definidos pelas relações claro-escuro,
cheio-vazio e pelos acabamentos mais primorosos. As sobrevergas, venezianas,
rótulas e guilhotinas são elementos associados aos vãos e reforçam esta
atribuição compositiva que eles exercem. A madeira é o material empregado em
todos os componentes até à introdução das molduras em argamassa.
Apesar de toda a simplicidade com que se apresenta esse edifício, é
possível perceber, nas janelas da varanda, o emprego de venezianas e mesmo de
bandeira com quadros para a colocação de vidros.
Em seu interior, várias modificações podem ser observadas, com é o caso
da substituição do piso original – provavelmente de tabuado – do corredor, de
dois quartos e da varanda, por piso cerâmico (ladrilho hidráulico) de uso
corrente em meados do século XX. Também o corpo anexo teve seu piso
substituído, se bem que por outro não tão nobre quando aquele implantado no
bloco principal. Nessa região, foi utilizado o cimento queimado, mais indicado
para áreas molhadas. Apenas dois dos quatro quartos que compõem essa residência
tiveram seu piso original preservado.
Apesar de não representar uma residência de caráter urbano, o edifício
demonstra claramente a forma urbana de morar e viver.
Edifício secundário
O segundo edifício que compõe o conjunto apresenta a mesma forma de
organização e distribuição encontrado no anterior. Representativo do mesmo
modelo, conhecido como “morada inteira”, difere do edifício principal pelo fato
de apresentar apenas três janelas na fachada, contra as quatro daquele outro.
Fachada do edifício secundário, voltada para a via pública
Um dos
elementos que identificam esse segundo edifício como representativo da
arquitetura residencial urbana é o fato de não apresentar aberturas nas
laterais, o que faz com os quartos localizados, na parte central da edificação,
não têm janelas para iluminação e ventilação. De acordo com Vaz e Zarate (2003, p. 167), na arquitetura
tradicional goiana
não se
podem notar indicadores formais de características regionais exclusivas. As
casas construídas são todas muito semelhantes. Mesmo quando as pequenas
alterações ornamentais foram introduzidas nas regiões nordeste e sul (objetos
de estudo e análise) por agentes construtores de origem diversa (baianos e
mineiros, respectivamente) as semelhanças prevalecem tanto na organização
espacial das plantas baixas, nos sistemas construtivos como nas ornamentações.
Tal colocação, que se apresenta como uma observação geral sobre a casa
tradicional brasileira, tem na frase de Vauthier (1975, p. 37), sua maior expressividade. De acordo com
esse estudioso de nossa arquitetura vernacular, “quem viu uma casa brasileira,
viu quase todas”.
Planta do edifício secundário
Nesse caso, sendo o edifício representativo da arquitetura residencial
urbana, vai aparecer também como elemento diferenciador, em relação ao edifício
rural, a cobertura estruturada em apenas duas águas, no corpo principal, caindo
uma para a rua e a outra para a parte posterior da edificação. Quanto a essa
forma de organização da cobertura, diz Suzy de Mello (1985, p. 98), que, no geral, as edificações se
estabeleciam ao longo da via pública, elaboradas
por sua
vez “parede-meia”, ou seja, unidas nos seus limites laterais, ensejando a
utilização de coberturas de duas águas que, caindo para a rua e para os
quintais, davam escoamento natural para as águas pluviais.
De acabamento inferior, apresenta o piso em chão batido, sem uso de
revestimento em qualquer dos cômodos. Também o bloco de serviços se apresenta
de maneira diferente, sendo ocupado apenas pela cozinha, não apresentando nem o
tradicional depósito de mantimentos – despensa – e nem o banheiro, comumente
adaptado. Aliás, esse edifício não apresenta banheiro, sendo por isso mesmo, de
dimensões reduzidas. Aparece aí um fogão à lenha associado a um forno – do tipo
empregado para assar biscoitos – que geralmente é encontrado do lado de fora da
residência.
Percebe-se, nesses dois edifícios, a representação de tudo o que se
conhece como o desenvolvimento da maneira de viver e morar da população goiana,
que, de certa forma reproduz seu processo de organização social e cultural,
herdada da tradição própria da população que primeiramente ocupou e colonizou o
território goiano, no período de tempo, compreendido pelos séculos XVIII e XIX.
[1]
Utilizada ainda hoje, em praticamente todo o interior do estado, a telha
capa-e-bica, também conhecida como telha canal ou telha colonial, apresenta
formato de meio cone e é produto de fabricação artesanal, elaborada, no mais
das vezes, no próprio local da construção. Já recebeu também o nome de telha
mourisca, como referência às suas raízes mouras.
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