quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

arquitetura em Goiás II

A CASA URBANA DO PERÍODO MINERADOR EM GOIÁS

Quando da determinação real para que se implantasse uma vila, na capitania de Goiás, a ser desmembrada da de São Paulo, a Carta Régia que instruía tal fundação orientava para que as residências  a serem aí edificadas se pautassem por uma certa padronização em seu exterior, mesmo que, pelo interior, cada uma fosse feita ao gosto de seu proprietário. Entretanto, essa padronização que pode ser ainda hoje observada nas fachadas das casas goianas do período colonial, principalmente aquelas edificadas na antiga capital, estendeu-se para seu interior, fazendo com que se encontrassem aí, dois modelos básicos de planta.
o modelo de residência denominado "meia morada"

O primeiro desses modelos, conhecido como “meia-morada”, se desenvolve como conseqüência do melhor aproveitamento de terrenos consideravelmente estreitos, com testadas que apresentam dimensões variando entre seis e oito metros de largura. Como resultado do aproveitamento de tais medidas surge

um padrão de certa forma constante, segundo o qual a planta se organiza a partir de um corredor lateral, paralelo a um dos limites longitudinais do terreno, com os cômodos se desenvolvendo ao longo de sua extensão. Sendo assim, em um primeiro plano temos a sala, representando o espaço intermediário entre o exterior e o interior da casa. Em seguida vêm os quartos, ou alcovas, tendo aos fundos a varanda, que é uma sala de convivência que ocupa geralmente toda a largura posterior dessa parte do edifício, sendo o espaço da casa onde, preferencialmente, ficavam as mulheres (Coelho, 2001, p.205).

O segundo modelo de residência encontrado em Vila Boa e considerado como padrão construtivo de melhor organização, objetivando atender a uma família mais numerosa, é conhecido como “morada inteira”, e corresponde, em dimensões, a uma duplicação da planta do primeiro modelo, passando o corredor a se apresentar em posição central, não alterando, no entanto, sua função como eixo distribuidor.
outro modelo: a "morada inteira"

Quanto à organização interna e distribuição da planta da nova casa urbana encontrada nas regiões de mineração, é possível perceber claramente uma organização espacial diversa daquela encontrada na casa rural desenvolvida pelos paulistas, guardando, entretanto o novo modelo, a mesma representação determinada pela organização familiar e cultural do colonizador. Isso é claro, dentro de um novo contexto social e econômico, além de novas referências técnicas e construtivas.
Ao estudar as residências rurais representativas da arquitetura bandeirista, Carlos Lemos (1999, p. 21) faz, como já vimos, referência ao fato de não haverem se modificado, ao longo de duzentos e cinqüenta anos de ocupação do interior paulista. A mesma observação pode ser feita quando se estuda as edificações representativas, tanto da arquitetura urbana quanto rural desenvolvidas no interior goiano, no decorrer dos séculos XVIII e XIX. Tanto as técnicas construtivas quanto os materiais empregados e o programa de necessidades permanecem os mesmos, com raríssimas e pequenas alterações.
Exemplo claro desse processo de organização do espaço residencial, em Goiás, pode ser visto no conjunto representado pela residência e respectivo anexo de propriedade do Senador Antonio – Totó – Caiado, considerado como uma propriedade semi-rural na periferia da antiga capital do estado, composto de uma residência principal e outra, de caráter secundário, construída posteriormente para abrigar empregados de suas fazendas e que, com o crescimento de sua família, passou a ser utilizada pelos filhos rapazes.
Iniciando o estudo pela planta de situação, podemos perceber duas formas diferenciadas de implantação, estando o edifício principal estabelecido no terreno de forma totalmente aleatória, como é próprio das construções rurais – as sedes de fazendas ou mesmo de chácaras, como é o caso. É possível perceber aí a preocupação em estabelecer o edifício próximo a um curso d’água, no caso o Córrego da Prata, além de estar sua fachada principal voltada para o Norte, que no caso, coincide com a localização da cidade em relação ao terreno.
implantação dos edifícios no terreno

O segundo edifício, já com características urbanas, apresenta-se implantado na testada do terreno, no limite da via pública, provavelmente inexistente quando da construção do primeiro edifício. Extremamente simples e rústica e preservada em sua integridade até hoje, mostra bem a forma despretensiosa e despojada com que o importante líder político de então vivia, juntamente com sua família.
Temos assim, no conjunto, um edifício que em sua implantação apresenta uma série de elementos e características das construções rurais e outro, representativo da arquitetura urbana, ambas próprias do que se construía, em Goiás, no período colonial.


Edifício principal
    
O edifício principal, conhecido como sendo a residência oficial de Totó Caiado, na antiga capital, é uma construção que se caracteriza, em todos os sentidos, pelo que se conhece hoje como representativo da arquitetura colonial, unindo elementos tanto da produção urbana quanto rural.
 o edifício principal do conjunto

Apresenta sua estruturação toda em madeira, com paredes elaboradas, em adobe, servindo exclusivamente como vedação. A cobertura está estruturada em quatro águas, no corpo principal, e apenas uma no puxado, com rincão transversal, utilizando a forma mais comum de cobertura, no período colonial, que é a telha capa-e-bica[1]. Convém observar que em decorrência do clima e das altas temperaturas encontradas, na antiga Vila Boa, na maior parte do ano, a telha vã é a forma de cobertura que melhor atende às necessidades de conforto da população, proporcionando uma climatização agradável, no interior das residências, em oposição ao que se encontra em seu exterior. Sendo assim, em alguns edifícios, é possível perceber o uso de forro em apenas alguns cômodos, considerados mais nobres. No edifício, em estudo, o forro não aparece em nenhum dos compartimentos.
A planta desse edifício se organiza de acordo com o padrão encontrado na casa urbana, conhecida como “morada inteira”, onde aparece um corredor central que estrutura e promove a distribuição e acesso aos cômodos aí existentes. Faz, esse corredor, a ligação entre o pátio situado na parte anterior da edificação e a varanda que, como já foi visto, é a sala de convivência da família, onde se desenvolvem os trabalhos domésticos, as refeições e reuniões. Compõem ainda, o bloco principal do edifício, os compartimentos destinados aos quartos do proprietário, assim como de suas filhas. Os rapazes, é sabido, passaram a utilizar o segundo edifício.
Alguns dos elementos constitutivos desse modelo de habitação – tanto urbano quanto rural – se reproduzem de tal modo pelo território colonial que passam a ser entendidos, por grande parte dos historiados da arquitetura brasileira como representativos de uma certa homogeneidade, ou mesmo imutabilidade. Discutindo esse assunto, dizem Vaz e Zarate (2003, p. 73), que

essa homogeneidade se manifesta fundamentalmente na presença do corredor, elemento estruturador do espaço, e no desenvolvimento do programa básico no interior  de formas quadrangulares e retangulares. Essa clareza geométrica é, por vezes, interrompida por imposição do formato do terreno ou dos acréscimos posteriores que não rompem o esquema básico tradicional.

Quanto à questão da estruturação dos edifícios urbanos, convém lembrar que existiam, no período colonial, duas formas de organização interna das residências. Partindo do princípio básico das dimensões do lote, onde os mais estreitos, cujas testadas estavam reduzidas a seis ou oito metros, as residências se organizavam, segundo Suzy de Mello (1985, p. 98),

em plantas geradas a partir da própria configuração dos terrenos, tendo um corredor – paralelo aos limites laterais do terreno – como eixo longitudinal e que ia da rua ao quintal. Na frente situava-se a sala, no centro os quartos (ou alcovas), ao fundo uma espécie de “sala familiar” – correspondente ao estar íntimo de hoje – onde preferencialmente ficavam as mulheres. Seguiam-se puxados para a cozinha e a senzala e depois o quintal. No caso de famílias maiores geralmente era feito um simples rebatimento (ou duplicação) da planta usual, passando o corredor, então a ser central.

E é exatamente essa forma duplicada de organização estrutural do edifício residencial urbano que vai ser utilizado na elaboração da casa principal da chácara de Totó Caiado, reproduzindo claramente uma série de elementos de caráter tanto social quanto cultural, formadores da personalidade do brasileiro de então.
O que realmente diferencia essa sede de chácara de uma residência eminentemente urbana é o fato de apresentar aberturas para iluminação e ventilação em praticamente todos os cômodos, o que dificilmente acontece naquele. Os quartos situados, na parte anterior do edifício, apresentam aberturas tanto na fachada quanto na lateral. Os quartos situados, na seqüência, apresentam uma janela cada e a varanda, seis janelas, em três de suas quatro paredes. No anexo, apenas a despensa não apresenta janela para o exterior, o que aparece inclusive no banheiro, adaptado na parte posterior da cozinha.
Planta do edifício principal

Existe, nesse edifício, um segundo banheiro, acrescido em tempo posterior, facilmente identificável por estar fora do perímetro original da construção.
Sendo a arquitetura goiana do período colonial considerada de extrema simplicidade, passa a ser vista como uma preocupação quase que erudita, a forma totalmente equilibrada com que as aberturas se apresentam na fachada principal desse edifício, com duas janelas de cada lado da porta principal de acesso, estando bem proporcionadas as dimensões dos espaços cheios e vazios, o que, de certa forma, centraliza as aberturas em relação ao vigamento da fachada.
Quanto à organização dos vãos em relação à composição das fachadas dos edifícios residenciais próprios do período colonial, dizem Vaz e Zarate (2003, p. 61) que

na composição das fachadas os vãos exercem papel fundamental, porque são eles que conferem ritmos e contrastes, definidos pelas relações claro-escuro, cheio-vazio e pelos acabamentos mais primorosos. As sobrevergas, venezianas, rótulas e guilhotinas são elementos associados aos vãos e reforçam esta atribuição compositiva que eles exercem. A madeira é o material empregado em todos os componentes até à introdução das molduras em argamassa.

Apesar de toda a simplicidade com que se apresenta esse edifício, é possível perceber, nas janelas da varanda, o emprego de venezianas e mesmo de bandeira com quadros para a colocação de vidros.
Em seu interior, várias modificações podem ser observadas, com é o caso da substituição do piso original – provavelmente de tabuado – do corredor, de dois quartos e da varanda, por piso cerâmico (ladrilho hidráulico) de uso corrente em meados do século XX. Também o corpo anexo teve seu piso substituído, se bem que por outro não tão nobre quando aquele implantado no bloco principal. Nessa região, foi utilizado o cimento queimado, mais indicado para áreas molhadas. Apenas dois dos quatro quartos que compõem essa residência tiveram seu piso original preservado.
Apesar de não representar uma residência de caráter urbano, o edifício demonstra claramente a forma urbana de morar e viver. 

Edifício secundário

O segundo edifício que compõe o conjunto apresenta a mesma forma de organização e distribuição encontrado no anterior. Representativo do mesmo modelo, conhecido como “morada inteira”, difere do edifício principal pelo fato de apresentar apenas três janelas na fachada, contra as quatro daquele outro. 
Fachada do edifício secundário, voltada para a via pública

Um dos elementos que identificam esse segundo edifício como representativo da arquitetura residencial urbana é o fato de não apresentar aberturas nas laterais, o que faz com os quartos localizados, na parte central da edificação, não têm janelas para iluminação e ventilação. De acordo com Vaz e Zarate (2003, p. 167), na arquitetura tradicional goiana

não se podem notar indicadores formais de características regionais exclusivas. As casas construídas são todas muito semelhantes. Mesmo quando as pequenas alterações ornamentais foram introduzidas nas regiões nordeste e sul (objetos de estudo e análise) por agentes construtores de origem diversa (baianos e mineiros, respectivamente) as semelhanças prevalecem tanto na organização espacial das plantas baixas, nos sistemas construtivos como nas ornamentações.

Tal colocação, que se apresenta como uma observação geral sobre a casa tradicional brasileira, tem na frase de Vauthier (1975, p. 37), sua maior expressividade. De acordo com esse estudioso de nossa arquitetura vernacular, “quem viu uma casa brasileira, viu quase todas”.
Planta do edifício secundário
Nesse caso, sendo o edifício representativo da arquitetura residencial urbana, vai aparecer também como elemento diferenciador, em relação ao edifício rural, a cobertura estruturada em apenas duas águas, no corpo principal, caindo uma para a rua e a outra para a parte posterior da edificação. Quanto a essa forma de organização da cobertura, diz Suzy de Mello (1985, p. 98), que, no geral, as edificações se estabeleciam ao longo da via pública, elaboradas

por sua vez “parede-meia”, ou seja, unidas nos seus limites laterais, ensejando a utilização de coberturas de duas águas que, caindo para a rua e para os quintais, davam escoamento natural para as águas pluviais.

De acabamento inferior, apresenta o piso em chão batido, sem uso de revestimento em qualquer dos cômodos. Também o bloco de serviços se apresenta de maneira diferente, sendo ocupado apenas pela cozinha, não apresentando nem o tradicional depósito de mantimentos – despensa – e nem o banheiro, comumente adaptado. Aliás, esse edifício não apresenta banheiro, sendo por isso mesmo, de dimensões reduzidas. Aparece aí um fogão à lenha associado a um forno – do tipo empregado para assar biscoitos – que geralmente é encontrado do lado de fora da residência.
Percebe-se, nesses dois edifícios, a representação de tudo o que se conhece como o desenvolvimento da maneira de viver e morar da população goiana, que, de certa forma reproduz seu processo de organização social e cultural, herdada da tradição própria da população que primeiramente ocupou e colonizou o território goiano, no período de tempo, compreendido pelos séculos XVIII e XIX.



[1] Utilizada ainda hoje, em praticamente todo o interior do estado, a telha capa-e-bica, também conhecida como telha canal ou telha colonial, apresenta formato de meio cone e é produto de fabricação artesanal, elaborada, no mais das vezes, no próprio local da construção. Já recebeu também o nome de telha mourisca, como referência às suas raízes mouras. 

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