A ARQUITETURA EM GOIÁS E SUAS PRIMEIRAS INFLUÊNCIAS
A história da ocupação territorial
no Brasil tem na arquitetura rural desenvolvida nos três primeiros séculos, um dos
principais fatores de integração e desenvolvimento, servindo de base para a
evolução de uma arquitetura urbana de características próprias, além de apoiar tanto o estudo
quanto o conhecimento de toda a organização não só espacial por que passou o
colonizador português em território americano, como também em todos os aspectos
da formação da nacionalidade brasileira.
A arquitetura de caráter rural implantada pelo colonizador no decorrer do
período colonial apresenta dois momentos principais de desenvolvimento,
representados, o primeiro no nordeste, pela casa grande dos engenhos de açúcar,
da Capitania de Pernambuco, e o segundo, bem mais ao sul, mais precisamente na
Capitania de São Vicente – atual estado de São Paulo – pela chamada “casa
bandeirista”, que como aquela, se reveste de
considerável importância histórica, ao representar um momento de grande
relevância para o nosso desenvolvimento.
Casa do Pe. Inácio em Cotia-SP, exemplo de Casa Bandeirista.
Para uma maior compreensão do processo de ocupação do território goiano,
no período representado pelos séculos XVIII e XIX, vai ser de real interesse,
apenas o segundo modelo construtivo, já que é a arquitetura que melhor pode
representar o ponto de partida utilizado pelos bandeirantes que, saindo de seu
território de domínio, no interior paulista, vieram desbravar e ocupar as
regiões produtoras de metais preciosos de Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso.
Elaborados inicialmente, com o uso da taipa-de-pilão, esses edifícios
apresentam a organização espacial interna como um reflexo da forma como seu
construtor e usuário se organiza, a partir de certas determinantes culturais
que vão demonstrar a clara evolução de uma série de fenômenos que se
processavam, estruturando a própria sociedade bandeirista.[1]
Tais determinantes vão marcar não só a arquitetura produzida em território
paulista, como também aquela desenvolvida nas principais áreas sob sua
influência, notadamente as regiões mineradoras descobertas a partir dos
momentos finais do século XVII.
Forma de organização interna da Casa Bandeirista
A divisão do espaço interno dessas edificações em faixas e a existência
de uma sala de convivência familiar demonstram bem a forma como as
determinantes sócio-culturais aí se estabelecem, com a hierarquização do
trabalho doméstico e a segregação da mulher em relação ao contato com
visitantes e desconhecidos, principalmente aqueles do sexo masculino. A análise
de tais edifícios deixa, no entanto, uma certa preocupação ao se constatar a
ausência de espaço destinado às atividades de cozinha e serviços correlatos, o
que não encontra similar em nenhum outro modelo.
Uma constante característica desse tipo de edifício rural, foi a escolha
do
local
onde se assentava a residência e o próprio modo de agenciá-la num determinado
terreno. Em primeiro lugar, sempre se dava preferência a um ponto situado a
meia encosta da paisagem (Saia, 1978, p. 67).
estando
invariavelmente voltado para o norte e próximo a um curso d’água.
Temos, portanto que, ainda segundo Luis Saia (1978, p. 130-131), o modelo característico da
arquitetura paulista dos primeiros séculos se apresenta instalada invariavelmente
dentro de um
retângulo, com paredes de
taipa-de-pilão, telhado de quatro águas e cobertura com telha de canal. Prefere
sempre uma plataforma natural ou artificial, à meia encosta, nas proximidades
de um riacho. A planta se desenvolve segundo um esquema preciso: uma faixa
social, fronteira, contém a capela e o quarto de hóspedes e, no meio, o
alpendre; atrás dessa faixa e em correspondência com as divisões dela, em torno
de uma faixa central os quartos se dispõem lateralmente. Às vezes, no fundo,
comparece um agenciamento de serviço, dando acesso ao pavimento superior.
Considera-se, no caso, como pavimento superior, o aproveitamento do
pé-direito relativo aos quartos, entre o forro e o telhado, utilizado
geralmente para o armazenamento de cereais.
É fácil perceber, ao se observar a planta do conjunto de edifícios
remanescentes desse modelo, encontrado ainda hoje em território paulista, a
grande semelhança em sua estrutura construtiva, demonstrando um número
irrisório de diferenças, não aparecendo aí nada que seja realmente de grande
consideração. De acordo com Lemos (1999, p. 21),
um fato
é certo: por mais de duzentos e cinqüenta anos a planta e mesmo o partido
arquitetônico da casa roceira colonial paulista da bacia do Tietê não tiveram
alterações significativas, o que indica não ter havido mudanças no modo de
morar, isto é, não terem ocorrido variações no programa de necessidades, o que
indica, antes de tudo, uma estabilidade social em que as expectativas de ordem
cultural mantiveram-se plenamente satisfeitas e imutáveis. Por duzentos e
cinqüenta anos uma sociedade segregada serra acima usando a mesma casa. Mesma
casa e mesma técnica construtiva.
Das determinantes culturais, a segregação familiar e o acolhimento
cordial, das técnicas construtivas, a taipa-de-pilão, definindo a argila como
material de fundamental importância.
A INTERIORIZAÇÃO DA ARQUITETURA
Com a descoberta do ouro, na região de Minas Gerais, nos anos finais do
século XVII, houve uma verdadeira corrida de considerável número de
aventureiros aos locais onde o metal era encontrado, podendo ser identificados
mineradores vindos não só das mais diversas regiões da colônia, como também da
metrópole. Ao passar por essa região, já iniciado o século XVIII, diz o padre
Antonil (1982, p. 167)
que a
cada
ano, vêm nas frotas
quantidade de portugueses e de estrangeiros, para passarem às minas. Das
cidades, vilas, recôncavos e sertões do Brasil, vão brancos, pardos e pretos, e
muitos índios, de que os paulistas se servem. A mistura é de toda a condição de
pessoas: homens e mulheres, moços e velhos, pobres e ricos, nobres e plebeus,
seculares e clérigos, e religiosos de diversos institutos, muitos dos quais não
tem do Brasil convento nem casa.
Esse afluxo populacional vai provocar o surgimento de uma infinidade de
núcleos urbanos, muitos deles de duração efêmera, já que a maioria existiu
enquanto o ouro era conquistado em quantidades compensadoras. Nesse momento, a
vida na colônia, de feições puramente rurais, passa radicalmente a urbana,
provocando alterações profundas na forma de organização e do relacionamento
entre a população da colônia.
A implantação desses novos núcleos provocou a necessidade de se repensar
o modelo, as técnicas e os materiais construtivos utilizados pelos paulistas,
baseada principalmente em duas questões fundamentais: a primeira estaria
relacionada ao fato de ser a experiência paulista com a construção quase que
restrita à arquitetura rural, sendo o novo momento construtivo representado
pela produção urbana, onde necessidades antes relevadas começam a se colocar
como fundamentais na determinação de um novo programa. Outra questão de
fundamental importância estaria relacionada aos custos e ao tempo empregado na
construção, dentro dos moldes característicos da arquitetura paulista.
É então abandonada a taipa-de-pilão, como método construtivo básico,
passando as novas edificações a serem elaboradas em decorrência de novas
influências portuguesas, com a utilização agora, de uma estrutura autônoma de
madeira[2],
formando gaiolas, com as paredes, de adobe ou pau-a-pique servindo basicamente
como elemento de vedação.
Também, nesse novo modelo, é clara a divisão do edifício em faixas – como
ocorre na casa bandeirista – mesmo que a distribuição e uso dos ambientes
ocorra de forma diferenciada. Percebe-se agora, o aparecimento de novos
compartimentos e, compondo a faixa de serviços, o uso de espaço destinado à
cozinha, além de um depósito para alimentos, mesmo que se apresentando de forma
um tanto segregada, implantada, em um bloco anexo, que, definitivamente, não
compõe o volume nobre da edificação.
Plantas das casas denominadas "meia morada" e "morada inteira"
Equivalente à sala íntima da casa bandeirista, tanto em localização
quanto em uso, é possível perceber nessa nova casa urbana, de acordo com Lemos (1993, p. 103) a
grande
sala familiar, na varanda, também chamada sala de jantar. A sala-praça,
passagem obrigatória entre a rua e a cozinha ou o quintal. A sala onde
desembocava o corredor vindo da rua, por onde transitava a criadagem,
carregando os potes de água, a lenha dos fogões, os mantimentos, os animais
domésticos. Sala onde a família ficava reunida, nas horas de lazer e nos
momentos de trabalho caseiro. Sala íntima, antes de tudo, local de acesso às
alcovas escuras e, portanto, local de passagem obrigatória dos urinóis pejados
dos excretos noturnos.
Vale a pena observar que, no geral, a escassez de terreno urbano para ser
ocupado por essa nova população urbana, contribui também para que os lotes
sejam definidos com dimensões reduzidas em suas testadas. Isso vai, juntamente
com uma série de determinações oficiais, promover uma certa padronização no
número de aberturas, na altura dos edifícios e principalmente no alinhamento em
relação às vias públicas. Tais questões, de acordo com Reis Filho (1976, p. 24)
revelam
uma preocupação de caráter formal, cuja finalidade era, em grande parte,
garantir para as vilas e cidades brasileiras uma aparência portuguesa. As
repetições não ficavam porém somente nas fachadas. Pelo contrário, mostrando
que os padrões oficiais apenas vinham completar uma tendência espontânea, as
plantas, deixadas ao gosto dos proprietários, apresentavam sempre uma
surpreendente monotonia.
Tais padronizações faziam com que, para um melhor aproveitamento dos
espaços, as casas fossem construídas parede-meia, o que, por sua vez faz com
que as aberturas para ventilação e iluminação fiquem restritas ao sentido
longitudinal da edificação. A união das características impressas nesses
modelos de habitação, a casa bandeirista e a casa urbana do período minerador
vai determinar em grande parte a forma como se apresenta a arquitetura rural
goiana. Isso é claro, a partir de uma visão ainda não aprofundada, considerando
que para uma afirmação conclusiva, inúmeros são os aspectos que ainda serão
necessários avaliar.
Grosso modo podemos perceber espaços que sob certa ótica representam
adaptações a novas necessidades, em relação aos usos encontrados nos modelos
anteriores.
No novo edifício, a sala pode facilmente ser entendida como uma adaptação
do alpendre bandeirista, assim como o primeiro quarto como sendo o quarto de
hóspedes daquela. A capela, terceiro elemento de composição da faixa fronteira
da casa paulista é então eliminada do edifício, ficando agora no arraial, que,
segundo Suzy de Mello (1985, p.
225) está invariavelmente muito próximo, o que, em hipótese alguma vem
justificar a instalação de um espaço destinado a atividades religiosas dentro
de uma propriedade rural que não se encontra mais tão distante do núcleo
urbano.
A sala maior situada na faixa íntima apresenta o mesmo uso já encontrado
no salão central da casa paulista, assim como na varanda da casa urbana, e a
cozinha, apesar de já haver conquistado grau de importância, encontra-se ainda
instalada, de forma até certo ponto segregada, em relação ao volume total do
edifício, na parte posterior e com o piso em nível mais baixo que o daquele.
A terceira faixa, seguindo a organização bandeirista, acontece de forma
diferente. Enquanto, no primeiro caso, está representada pelo conjunto de
alpendre de serviço e depósitos, nos outros dois modelos – casa urbana e rural
da região mineradora – engloba a cozinha e o depósito de mantimentos (a
despensa) que posteriormente tem sua área dividida para dar lugar à instalação
de um banheiro.
[1]
Tanto os estudos de Luis Saia, quanto os de Carlos Lemos consideram que a forte
estruturação sócio-cultural do habitante do planalto de Piratininga determinam
de forma plena e incontestável, a organização da “casa bandeirista”, não só na
rígida estruturação e distribuição interna, como também na seleção e uso de
materiais e técnicas construtivas.
[2]
Técnica conhecida pelo nome de FRONTAL, que em outras regiões da colônia estava
vinculada quase que exclusivamente ao uso do pau-a-pique, mas que em Goiás,
sempre esteve relacionado principalmente à utilização do adobe, como elemento
de vedação.
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